quinta-feira, 27 de julho de 2017

Passos retos


Ele deu passos retos. Como lhe haviam ensinado os pais que, sendo gente sem posses, eram ainda assim exemplo nas teceduras da honestidade. Acreditara nas palavras que tinham ensinado, sempre em sotaques campestres e meio perdidos na formulação das ideias. "Faz o bem e bem te virá".

Ele deu passos retos. No dia de pagar as contas, o recibo sobre a mesa indicava que tudo se saldara. Mesmo no café usual, se acaso esquecia a carteira, nunca pedia fiado. Fazia os quilómetros que o separavam da casa, fizesse chuva ou sol, a pé, para ir buscar os cêntimos que lhe tinham faltado e, no regresso, deixava ainda a gorjeta em agradecimento pela compreensão demonstrada pela demora.

Ele deu passos retos. Nas caixas dos supermercados cedia passagem, não só a idosos, grávidas e deficientes. Cedia passagem à senhora que olhava para o relógio com medo de perder os transportes e à adolescente que levava apenas um snack para o lanche da manhã. E, chegando junto do funcionário desagradável, perguntava como ia a vida, esperava resposta e deixava, juntamente com o pagamento, duas palavras de alento para o dia.

Ele deu passos retos. Se ao passar na rua via no chão um papel, logo se curvava para o apanhar e o depositar no balde do lixo e, se acaso sabia que alguns metros mais à frente havia um contentor de reciclagem, avançava para ele, colocando com cuidado cada despojo no lugar que lhe cabia.

Ele deu passos retos. Quando chegava ao prédio, se acaso a empregada tinha acabado de passar esfregona, aguardava um pouco que o chão secasse. E nunca lhe dizia que era por isso. “Pode entrar, senhor Eduardo!”, mas ele não entrava. Dizia que aproveitar o sol lhe fazia bem aos ossos e aproveitava por perguntar à Dona Lurdes pelos filhos e os netos que moravam longe, na Alemanha. E ela sorria com os olhos e mostrava fotografias mal tiradas e amarrotadas que trazia no bolso do avental.

Ele deu passos retos. Um dia, andando na rua, encontrou um anel de diamante. Pensou que alguém estaria triste por ter perdido um anel de aspeto singelamente valioso. Desviou-se do seu caminho para passar na esquadra. Entregou o anel. O agente pediu que aguardasse. Aguardou. Veio o chefe. O chefe pediu que aguardasse. Aguardou. Veio o superior do chefe. Pediu que aguardasse. Aguardou. O anel tinha sido roubado. Disseram. Pediram que contasse a história. Contou. Uma vez. Duas. Três vezes. Acusaram-no de roubo. Disseram que deveria pagar uma coima ou que o tomariam em custódia. Não tinha dinheiro para a coima. Encarceraram-no.

Sentado na cela de paredes lisas, ele contou os dias. Traços retos. Quatro a quatro, cortados. Muitos. À espera da justiça. Cada um dos seus passos era agora um traço. E mais um, que fez sobre as palavras dos seus pais: "Faz o bem e bem te virá".

Era uma frase sábia mas fora de tempo.

E não havia mais tempo.

Esgotaram-se os passos.

Esgotaram-se os traços.

Esgotaram-se os dias.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 18 de julho de 2017

Número e medida



Tenho mãos. Elas são garras. Tenho feito, com elas, poemas e cicatrizes. Em igual número e medida, para que não pensem que sou gente e não digam que sou monstro. Mas, olhando para as minhas mãos, quase todos viram o monstro. Tu não. Tu viste gente.
Tenho olhos. Eles são balas. Tenho feito, com eles, apreciações do mundo e indignação. Pousando-o sempre no concreto das coisas e fechando-os sempre para sonhar. Faço-o para que não pensem que sou toda fantasia e não digam que finco no chão os pés que pisam gentia. Mas, olhando para os meus olhos, quase todos viram a mágoa. Tu não. Tu viste o Reino dos Sonhos, Quimera, pedras com feridas e fadas.
Tenho lábios. Eles são pedra. Tenho feito, com eles, frases de apreciação e críticas vorazes. Em igual número e medida, para que não pensem que sou doce e não digam que sou ácida. Mas, olhando para os meus lábios, quase todos viram o azedume. Tu não. Tu viste o nascer de um beijo, frutado e untado a mel.
Tenho pés. Eles são vento. Tenho feito, com eles, viagem que me levam às pessoas e corridas que me levam para longe delas. Em igual número, é verdade, para que não digam que vou sempre e não pensem que me quedo, estática, num lugar só. Mas, olhando para os meus pés, quase todos viram a partida. Tu não. Tu viste raízes e asas.
No centro de tudo o que és, dou por mim a querer fugir. Dos teus olhos. Desses que vêem o melhor de mim e não se assustam com o pior. Tentei fugir da loucura dos teus olhos. Que me olham. E me amam. E me acolhem. Ainda que as mãos sejam garras, e os olhos sejam balas, e os lábios sejam pedra e os pés sejam vento. Tentei ir. Mas batalhaste. Lutaste. Por mim. E bateu forte no peito, como a saudade, mas em forma de gente. Em forma de monstro. Em forma de nós.
Tenho coração. Ele é espada. Tenho feito, com ele, cortes irreversíveis e nomeações reais. Não em igual número. Não em igual medida. Matei muitos. Distingui um. Tu. Porque nunca ninguém me viu o coração. Mas tu viste. Porque os outros me fizeram rir ou chorar, mas nunca ambas. E porque és o único que consegue arruinar-me a maquilhagem com beijos e lágrimas e, ainda assim, fazer-me sentir a mulher mais bonita do mundo.
Tenho coração. Tinha coração. Tive coração. Ele era espada.
Hoje é teu.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 11 de julho de 2017

Les étoiles



Ele costumava chamar os meus olhos de “Les étoiles”. Dizia que eles cintilavam, de uma forma muito própria, no centro da escuridão da vida. E queria ser astrónomo, para poder olhar as estrelas eternamente. Essas dos meus olhos, aos quais chamava “Les étoiles”.
Passei muitas noites com as minhas estrelas presas no céu, ao lado dele. E apontávamos, rindo, as imagens imaginárias que as outras estrelas – as que não eram olhos - formavam, em pontos picotados no centro das noites sem luar.
O meu universo virava-se do avesso. E dava por mim inebriada pela incandescência solar de um desejo que ali nascia, mesmo debaixo do véu negro do céu, à medida que “Les étoiles” se fechavam para nos beijarmos.
Amanhecíamos. Eu e ele. E a rua. Algures, no centro da cidade poluída, encontrávamos carreiros de noite, onde idealizávamos um planeta sem pessoas, uma galáxia sem medos, um mundo só nosso. E ele falava do brilho dos meus olhos, nesses planos de utopia, tecidos finamente numa tela de irrealidades. “Les étoiles”. Uma exclamação que virava vento, partia e regressava com beijos nos lábios mornos do Verão.
Cada passo foi um ano. Mas poucos passos demos, nesta demanda de olhos postos no céu. Porque criávamos raízes no solo infértil de um mundo que gira em torno de uma única estrela, onde as pessoas olham muito mais em frente do que para cima e onde o brilho do sonho se troca com facilidade pelo concreto baço e pardacento. “Les étoiles”.
Continuei a olhar os céus. Nas noites sem lua. E a apontar desenhos nas estrelas. Eu dizia ver castelos e borboletas. Ele já não as via. Olhando o céu e esquecendo os meus olhos, ele dizia ver somente uma coisa. “Les étoiles”. E, com o tempo, deixou de se deitar ao meu lado para as ver. E, com o tempo, deixou de me olhar nos olhos. E, com o tempo, deixou de aparecer.
Ele costumava chamar os meus olhos de “Les étoiles”. Dizia que eles cintilavam, de uma forma muito própria, no centro da escuridão da vida. Quando foi, deixou-me o olhar negro. Levou “les étoiles”.
Hoje, as estrelas não cintilam.
As estrelas choram.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 4 de julho de 2017

No metro



A mão dele resvalou levemente. Acidentalmente. Escorregando pelo metal e encontrando a dela. Um toque envergonhado de segundos. Podia ser uma história de amor.

Manhã. Aquela hora de sol erguendo no horizonte e claridade a doer nos olhos que querem dormir. Avançamos todos para o subterrâneo. Como autómatos coordenados. Os nossos passos ganham um ritmo frenético, à medida que rugem os motores lá fora. E entramos na carruagem, onde se espremem e entalam pessoas, numa proximidade que, de tão indesejada, se torna doentia, repulsiva.
Lá nos encontramos todos, os desconhecidos. Tentamos olhar para um lugar qualquer onde não exista o risco de olhos encontrarem olhos. Não queremos ver, não queremos ouvir. Fica mal olhar. Então, enquanto metade se prende nos ecrãs do telemóvel ou faz chamadas desnecessárias à família inteira, a outra metade, de auriculares nos ouvidos, ouve música e agita levemente os cabelos mais ou menos penteados.
Ele entra. Devagar. Com a cadelinha simpática, que dá chicotadas leves nas pernas dos viajantes. Deixa-se guiar por ela. Fica ao meu lado, agarrando a barra de metal. Simpaticamente, a cadela cumprimenta-me. Noto que parece sorrir, à medida que me cheira de alto a baixo, tentando perceber qual a percentagem de humana e qual a percentagem de gato. Chega à conclusão de que sou um híbrido. Aceita-me assim e lambe-me a mão.
A senhora da frente olha para mim e ri-se do interesse da cadelinha no meu cheiro. Sorrio de volta e deposito no focinho da cadela uma festa de saudação. Só ela me cumprimenta, no metro cheio de gente. Cumprimentar é um ato irracional, como todos sabemos, aparentemente. E, de súbito, com olhos vagos e perdidos no infinito invisual, ele pergunta “aqui ninguém a pisa?”. Asseguro-o de que não. “Está segura entre nós”, ele sorri em resposta.
Como não vê, não precisa de se preocupar com o local onde lhe cai o olhar. Mas noto que os outros evitam olhá-lo, ali de pé, no metro, ao meu lado. Talvez tenham medo de que o olhar lhes fira a culpa de não se erguerem para ceder um lugar a quem, de direito, deveria tê-lo. E eu vou fazendo festinhas à simpática acompanhante de quatro patas, até que, num pedido meigo do dono, ela se deita aos nossos pés e ali permanece, sossegada, com um rabo dançante.
O metro travou numa estação. Quando o fez, a mão dele resvalou levemente. Acidentalmente. Escorregando pelo metal e encontrando a dela. Um toque envergonhado de segundos. Podia ser uma história de amor. Ele soltou um “peço desculpa”. Envergonhado e simpático. De olhar laço e perdido. Ela moveu a mão, como se o toque fosse um choque elétrico. Tinha auriculares nos ouvidos. Não deverá ter escutado. Se ouviu, não respondeu. Não o olhou. Limitou-se a afastar do toque.
Questionei se ela seria tão surda como ele era cego. Se seria tão cega como ele. Mas o metro parou de novo, sem confirmações.
Saímos na mesma estação. Ele foi, com a sua melhor amiga a abrir caminho e comigo atrás, em passos que não tentaram acompanhar a minha pressa. Subiu pelas escadas e fui com ele, em silêncio, até o ver passar as portinhas automáticas para a rua. Não sabia, sequer, se ele notava que eu o fazia. Não importava. No final, a cadelinha olhou para mim mais uma vez. Parecia sorrir. Ele também sorria. E eu. Mas não trocámos mais palavras.
A cegueira dele parecia-me ver-me melhor do que a multidão. E, pelo menos, não éramos surdos. Talvez por isso, nada havia que precisasse de ser dito.
Além disso, no centro do cinzento silencioso do asco humano, tínhamos o cumprimento mais simpático do metro. Talvez do mundo. Seguro entre nós. Para que ninguém o pise.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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