A mão dele resvalou levemente. Acidentalmente. Escorregando
pelo metal e encontrando a dela. Um toque envergonhado de segundos. Podia ser
uma história de amor.
Manhã. Aquela hora de sol erguendo no horizonte e claridade
a doer nos olhos que querem dormir. Avançamos todos para o subterrâneo. Como
autómatos coordenados. Os nossos passos ganham um ritmo frenético, à medida que
rugem os motores lá fora. E entramos na carruagem, onde se espremem e entalam
pessoas, numa proximidade que, de tão indesejada, se torna doentia, repulsiva.
Lá nos encontramos todos, os desconhecidos. Tentamos olhar
para um lugar qualquer onde não exista o risco de olhos encontrarem olhos. Não
queremos ver, não queremos ouvir. Fica mal olhar. Então,
enquanto metade se prende nos ecrãs do telemóvel ou faz chamadas desnecessárias
à família inteira, a outra metade, de auriculares nos ouvidos, ouve música e
agita levemente os cabelos mais ou menos penteados.
Ele entra. Devagar. Com a cadelinha simpática, que dá
chicotadas leves nas pernas dos viajantes. Deixa-se guiar por ela. Fica ao meu
lado, agarrando a barra de metal. Simpaticamente, a cadela cumprimenta-me. Noto
que parece sorrir, à medida que me cheira de alto a baixo, tentando perceber
qual a percentagem de humana e qual a percentagem de gato. Chega à conclusão de
que sou um híbrido. Aceita-me assim e lambe-me a mão.
A senhora da frente olha para mim e ri-se do interesse da
cadelinha no meu cheiro. Sorrio de volta e deposito no focinho da cadela uma
festa de saudação. Só ela me cumprimenta, no metro cheio de gente. Cumprimentar
é um ato irracional, como todos sabemos, aparentemente. E, de súbito, com olhos
vagos e perdidos no infinito invisual, ele pergunta “aqui ninguém a pisa?”.
Asseguro-o de que não. “Está segura entre nós”, ele sorri em resposta.
Como não vê, não precisa de se preocupar com o local onde lhe
cai o olhar. Mas noto que os outros evitam olhá-lo, ali de pé, no metro, ao meu
lado. Talvez tenham medo de que o olhar lhes fira a culpa de não se erguerem
para ceder um lugar a quem, de direito, deveria tê-lo. E eu vou fazendo
festinhas à simpática acompanhante de quatro patas, até que, num pedido meigo
do dono, ela se deita aos nossos pés e ali permanece, sossegada, com um rabo
dançante.
O metro travou numa estação. Quando o fez, a mão dele
resvalou levemente. Acidentalmente. Escorregando pelo metal e encontrando a
dela. Um toque envergonhado de segundos. Podia ser uma história de amor. Ele
soltou um “peço desculpa”. Envergonhado e simpático. De olhar laço e perdido.
Ela moveu a mão, como se o toque fosse um choque elétrico. Tinha auriculares
nos ouvidos. Não deverá ter escutado. Se ouviu, não respondeu. Não o olhou.
Limitou-se a afastar do toque.
Questionei se ela seria tão surda como ele era cego. Se
seria tão cega como ele. Mas o metro parou de novo, sem confirmações.
Saímos na mesma estação. Ele foi, com a sua melhor amiga a
abrir caminho e comigo atrás, em passos que não tentaram acompanhar a minha
pressa. Subiu pelas escadas e fui com ele, em silêncio, até o ver passar as
portinhas automáticas para a rua. Não sabia, sequer, se ele notava que eu o
fazia. Não importava. No final, a cadelinha olhou para mim mais uma vez.
Parecia sorrir. Ele também sorria. E eu. Mas não trocámos mais palavras.
A cegueira dele parecia-me ver-me melhor do que a multidão.
E, pelo menos, não éramos surdos. Talvez por isso, nada havia que precisasse
de ser dito.
Além disso, no centro do cinzento silencioso do asco humano,
tínhamos o cumprimento mais simpático do metro. Talvez do mundo. Seguro entre
nós. Para que ninguém o pise.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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