terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Desabafo de um blog

 



Caros/as leitores/as,

 

Eu nasci nas mãos imaturas dela. E ela não era ninguém. Sentava-se e escrevia. Raramente relia os textos antes de os publicar. Ainda tem esse hábito. É um bocado irritante, confesso...

 

Não me entendam mal. Também nunca houve muita gente a ler-me, pelo que os erros dela não me afetam. Afeta-me, isso sim, o facto de ela olhar para mim como uma espécie de lembrete da sua própria alma, como se eu não tivesse uma vida própria, uma identidade, um pensamento.

 

Sim! Eu tenho-o. Porque eu não sou o Monstro. Eu sou os Segredos que ele tem. E moro atrás do que ela não diz. Se é que há realmente algo que ela não diga.

 

Ao longo da história que eu tenho, ela criou-me vidas. Mudando-me o nome e o rosto a bel-prazer, sem que eu tivesse palavra a dar sobre o assunto. Vejam bem: houve um tempo em que até tentou macular-me a face com publicidade. Não funcionou porque não fazia sentido nenhum. Se ela não teve o senso de o saber, a Internet teve... talvez por isso se chamasse Ad-sense.

 

Semanalmente, eu tenho sido o veículo que vos traz os textos, da mesma forma que as nuvens trazem a chuva. Recolho-os, fazendo-os evaporar da alma dela e enchendo. Depois choro e faço poças de pensamento que conspurcam as mãos de filosofias e palavras quando correm o feed das vossas redes sociais. E as pessoas pegam na filosofia. Elogiam-na ou criticam-na. Mas sempre usando o nome dela e nunca o meu.

 

Esquecido e desamparado, sinto-me como um taxista, a levar as mensagens dela até vocês, sem que ninguém queira, na verdade, saber de mim.

 

Olhando para ela. Com olheiras fundas e ar de quem inveja os mortos, a escrever textos que não revê e publica, assim em cima do joelho. Olhando para ela. Que me usa uma vez por semana e se esquece de mim no resto dos dias, como se eu fosse uma vida só à terça-feira. Olhando para ela. É assim que vou caminhando pelos anos. Crescendo. Persistindo. Sendo.

 

Hoje é o meu décimo sétimo aniversário. E sim, eu sei que devo soar ao adolescente irritado e problemático, com uma crise qualquer. Mas hoje não quis que ela viesse para aqui falar dos problemas do mundo ou das paixões dos dias, nem mesmo das danças, da embriaguez e da importância da família. Hoje, quis falar de mim. O filho-breve que sobrevive à passagem do tempo.

 

Se fosse ela a escrever, sei que falaria de amor. Porque ela não sabe fazer outra coisa. Há coisas que não mudam. Mas, como sou eu, não quero falar de amor. Quero falar de mim. Dos Segredos de um Monstro. De como, semana a semana, dou algo ao mundo, como se parisse verdades universalmente grandes sobre a pequenez desse Monstro que ela sempre foi e continuará a ser.

 

Estou cansado. Muito cansado. Mas vivo. E, embora eu ache que ela devia rever os textos com mais cuidado, escrevê-los com mais tempo, dedicar-se mais a mim... o facto é este: eu sei que uma parte deste sentimento é inveja d’ [A(MOR]TE). Porque queria ser mais o centro dos dias dela. Porque queria ser mais o nome que ocupa estantes de livrarias. Porque – porra! – sei que ela me ama e eu a amo. E acabamos os dois. Sempre. Apesar de tudo - ao longo destes 17 anos da minha vida - a falar de amor.

 

Vosso, (dela e do Mundo)... há 17 anos,

Segredos de um Monstro


Marina Ferraz




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terça-feira, 24 de janeiro de 2023

As coisas

 


Uma sala vazia pode estar vazia. Uma sala vazia pode estar cheia. Uma sala cheia pode estar vazia. Uma sala cheia pode estar cheia. Está tudo certo, desde que o peito não esteja cheio de vazios...

 

 

Entro. São 70 metros quadrados. Uma cozinha. Uma sala. Um quarto. Uma casa-de-banho. A casa está cheia. Cheia de móveis. Móveis cheios de livros. Cheia de caixas. Caixas cheias de recordações, mantas e sapatos. Cheia de humidade. Humidade que se espalha. Paredes com humidade. Chão com gotículas ocasionais de condensação. Janelas embaciadas. A gata gosta da condensação na janela. Lambe-a como se a água da taça não servisse. As janelas ficam cheias de marcas de patas e línguas rugosas. Felizmente a casa está cheia de gata. É isso que a vai tornando um lar.

 

Com o tempo, móveis e caixas, roupas amontoadas que nunca uso e tralha de muitos anos começa a pesar-me como a toxicidade das conexões que quebrei. Nem todo o lixo é imundice. Algum é só perpetuação do passado. Mas o passado já foi. E eu não o quero em casa, da mesma forma que não o quero em mim. Então, vou esvaziando. Até que sobre só a roupa que eu uso. Até que fiquem só os tachos que servem. Até que fique só o que, olhando, me arranca um sorriso. A gata está confusa com o vazio e as caixas que enchi. Vendo-as desaparecer torna-se protetora do arranhador velho, tentando esconder essa peça de um metro de altura atrás dos seus míseros centímetros de fofura negra.

 

À medida que a casa vai ficando um espaço de essenciais, que se torna um lar quando a campainha toca e a gata adormece no meu colo, descubro tempo para pensar. Descubro o prazer de acender as velas que eram só decoração. Descubro como é bom usar os sabonetes e géis e sais de banho oferecidos e que se guardavam para o dia especial que, entretanto foi e passou e voltou a vir e a passar. A minha casa fica cheia de agoras à medida que se esvazia de ontens. O agora é presente por um motivo.

 

De olhos colados ao mundo – porque assim vivo e não sei viver de outra forma – apercebo-me de que as coisas são ainda o refúgio de muita gente. Noto-o no rosto alegre de quem compra artigos de saldo e na voz de quem lista tudo o que tem. Sinto que se prendem com grilhetas ao medo de as perder ou de não poder tê-las. Que procuram o novo como se fosse abrigo e, nele, a confiança que não têm, o respeito e a valorização que lhes falta. Penduram o seu próprio valor nas roupas de marca, nos acessórios da moda, nos artigos para a casa. Querem sentir-se parte de alguma coisa. E são. São parte das coisas que desejam, pelas quais lutam e que lhes comem o eu que seriam, se as coisas não fossem o seu epicentro.

 

As pessoas adoram coisas. E eu, que embora não seja a maior fã de coisas (ou de pessoas, em alguns dias), vou percebendo que nada nos fica realmente. Olho para o que fica nesse auto de fé que vou dando às coisas, à medida que me torno cada vez mais minimalista. Dou por mim a olhar para diários antigos, para poemas antigos, para cadernos e cadernos de história sobre a pessoa que fui, perpetuados sem motivo. Acendo a lareira. Deixo que ardam e respiro fundo. Tão mais leve. Saiba eu ter a sabedoria entre o que é essencial e o que me pesa. Peço. Saiba eu ter a sabedoria de distinguir entre o que me é fundamental carregar e o peso morto que me abranda.

 

Uma sala vazia pode estar vazia. Uma sala vazia pode estar cheia. Uma sala cheia pode estar vazia. Uma sala cheia pode estar cheia. Está tudo certo, desde que o peito não esteja cheio de vazios... Eu estou a deitar fora o que me deixa sem mim. São 70 metros quadrados. Uma cozinha. Uma sala. Um quarto. Uma casa-de-banho. A casa abre espaços que estavam cheios. Agora parecem vazios. Mas a gata vem para o meu colo. A campainha toca perto da hora de jantar. Cozinhei com amor e servi um vinho – daqueles que talvez tivesse guardado outrora – porque acho que hoje, como ontem e amanhã, é um dia especial. São 70 metros quadrados de uma casa tão cheia de sentidos que parece um lar.

 

Disse alguém que “as coisas mais importantes não são coisas”. Eu também acho que não são. Mas vou manter o arranhador... pelo sim, pelo não.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Mar à porta

 


“Não tenho medo de tempestades, pois elas me ensinam a navegar.”

- Louisa May Alcott

 

 

Avisaram-me que não atravessasse a soleira da porta. Fizeram isto com gestos. Alertaram-me para a tempestade. Encarcerando-me dentro de casa, com inundações de expetativa. Eu tinha mapas e bussolas, astrolábio e balestilha. Uma vontade imensa de navegar. Arderam. Na fogueira das expetativas dos outros. Das vontades dos outros. Nesse perpétuo estado de achar que eu devia ser não sendo. Ou, pelo menos, não sendo eu.

 

Vi arder as minhas vontades na agrura constante da chuva que caía. Não percebi que as nuvens pesadas eram justamente geradas nesse querer que os outros queriam, tão diferentes do que eu queria e do que eu queria querer. Sentei-me junto à lareira, aquecendo as mãos e os pés nos sonhos que queimavam, lentamente...

 

Na maioria das vezes, frases soltas começaram por “eu não” ou “eu só”. Justificações ocas sobre as grilhetas de vento e chuva, que me prendiam à ação, aparentemente tão inocente, tão inócua, tão inofensiva. As justificações serviam-me justas e apertavam-me a alma. E o inofensivo das palavras quase me sufocou. Ia morrendo. Mas as palavras eram lenha. Queimando-me os sonhos. E dizendo. Mais. Ainda bem que não foste. Podias morrer.

 

Choveu durante meses. Ininterruptamente. Até que comecei a afogar-me no amplo das divisões da casa. Protegeram-me das inundações da rua, cimentando as janelas e prendendo tábuas de madeira à porta. Nenhum inimigo entrará. Palavras de proteção. Nenhuma tempestade será parte dos teus dias.

 

Demorei a perceber que amava a tempestade. Mais do que a proteção. Que preferia as nuvens aos tetos. Que preferia as águas às mágoas. Que preferia morrer no mar do que morrer de marasmo.

 

Um dia, arrombei a porta. Descobri que à porta, a tempestade não criara inundação, mas mar. Não tinha já mapas e bussolas, astrolábio e balestilha. Tinha cinza e oceano e horizonte. Avancei.

 

Ainda me disseram que não navegasse. Justamente porque chovia. Porque já não tinha mapas e bussolas, astrolábio e balestilha, mas apenas os restos de pó. Mas eu tinha aprendido a lição. Fui. Porque queria ir. E queria fazê-lo sem mapas e bussolas, astrolábio e balestilha. Porque me queria perder. Pelo menos mais uma vez. E estar perdido também é navegar... parar por medo é naufrágio.

 

Fui. Fui num veleiro desorientado, levada pelo destino e a vontade dos Deuses. Segui por esse mar à minha porta. Finalmente perdi-me. Finalmente encontrei-me.

 

 

Abençoado seja quem tem o mar à porta. E coragem de navegar.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Algo que eu não goste

 


...essa é uma das muitas coisas que gosto em ti. – olhas-me, perguntas – quais são as outras? – Deuses! Olho-te e a resposta está no reflexo de ti nos meus olhos. Inteira. – Na verdade – respondo – ainda estou à procura de algo que não goste. Os teus olhos abrem de espanto. E eu espanto que te espantes. Nunca me senti mais transparente.

 

 

 

Olhaste-me pela primeira vez. Quando me olhaste pela primeira vez, eu estava quebrada e tu também. Mas tu não o sabias. E eu não to disse. Eu não o sabia. E não mo disseste. Sabíamos ambos que a vida era difícil. Apenas isso. Apresentámo-nos casualmente. Ou deixámos que o fizessem por nós. Deixámos o difícil no bolso. Lancei-me à profecia autodeterminada de uma arte que não era a minha. E lembro-me de pensar como seria, aos teus olhos, toda a minha incompetência. Só que, quando olhavas para mim, não havia traço de juízo. E, claro, como julgar o que não se conhece? Mas não era apenas isso... porque, de alguma forma, eu sabia que vias algo debaixo da minha pele. Ou seria no meu movimento? Ou seria nas minhas palavras? Senti que era transparente nos teus olhos e que, ainda assim, não me julgavas. E pude ser livre. Livre por entre uma prisão que talvez soubesses – por intuição - que eu tinha.

 

A debilidade e as chagas invisíveis que trazemos dentro são, muitas vezes, caminho para a efemeridade do corpo. E foi assim – indisposta e com alguns queixumes breves nos lábios – que conheceste de mim a fragilidade. Olhando-me, com esses olhos que atravessam a fronteira-pele, nunca senti que me achasses fraca. Não houve traço de condescendência. Não foste mais brando nem indulgente. De ti, apenas compreensão e equidade. De uma forma tão natural e simples que era fácil. O trabalho. A conversa. A pausa inesperada para comer – sem fome – e descobrir que, afinal, o alimento me dava a energia que faltava ao corpo e à alma.

 

Daí à descoberta. À falta. Ao saber que ia sentir falta. Do trabalho. Do espaço. Das conversas. E, quando me permiti admiti-lo, de ti. Da falta, à palavra. Novamente a simplicidade. Conversas. Momentos. Sentir-me Cinderela no momento antes do soar da meia-noite. E serem três da manhã. E ficar tanto por dizer na despedida debaixo das luzes e das estrelas.

 

O som cantante de palavras cheias de especiarias e as especiarias que trouxeram palavras cheias de som. E, depois, o silêncio. Amadrinhado pela Lua Crescente e por todos os grãos de areia. Com o mar a fazer-se testemunha e a tomar forma na pele, vez-após-vez.

 

Descobrir o cuidado. Com as coisas. Com os outros. Contigo. Com a vida. Com ser. Encontrar sonhos-mundo que se pintaram de silêncios no entender do espaço da respiração. O sonho aqui e agora. E todas as casas de madeira nas florestas virgens. O pensamento fora do molde-social e a arte.

 

O sorriso mais bonito do mundo. Cabe tanta verdade nele que não pode escrever-se. E, ainda assim, não mais bonito do que alma doce – nunca dócil nem domável – que lhe fica dentro. E o riso, num gomo de toranja, que a adoça. E a candura, na sapiência erudita que se simplifica com muitos silêncios entre frases. A doçura e o carinho e o plano para amanhã, descomplicado.

 

Cortar a lenha já morta e abraçar as árvores que dançam. Alimentar os seres que rastejam. Cuidar o verde e fazer brotar vida das sementes inertes. Dar nomes às árvores – mesmo se anãs – e encontrar beleza até nos recantos mais improváveis. Atentar aos pormenores. E pintar luas e auroras boreais no teto para dormir com as estrelas.

 

 

...essa é uma das muitas coisas que gosto em ti. – olhas-me, perguntas – quais são as outras?

 

 

Não sei responder. São tantas...

 

É que às vezes, quando acordo, abro os olhos devagarinho. E o teu semblante está lá. Adormecido. Sinto que acordo para sonhar. Imagina só. Eu que agradecia à noite, quando o dia terminava, dou por mim a agradecer na manhã, quando ele começa. Deuses, não sei como é que isto aconteceu. Como tive tanta sorte. Mas obrigada por mais um dia.

 

 

Acredita. Ainda estou à procura de algo que não goste. Procuro. Procuro mais um bocadinho. Por algo que não goste em ti. Mas é muito difícil, sabes? Não gostar de ser feliz!


 Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de janeiro de 2023

A senhora Miau

 


Depois do Natal, as resoluções de Ano Novo... e depois delas, o retorno.

 

 

Voltamos ao mesmo. Voltamos sempre ao mesmo. Dizemos que não vamos voltar. Mas voltamos. Ao mesmo. Precisa e inequivocamente o mesmo. Porque a memória humana é curta e televisão deixa de nos recordar, em horário nobre, que ser uma boa pessoa importa.

 

Então, depois do Natal. Dos gestos de Natal. Das prendinhas de Natal. Dos votos de Natal. Da caridade natalícia e da atenção redobrada, pintada de eufemismos toscos, sobre quem vive a guerra, a pobreza, a fome... Depois do Ano Novo e das resoluções sobre ser melhor, sobre ser no ano vindouro o que faltou ser no presente... depois de tudo isso, o retorno.

 

 

 

Todos os dias, quando faz o caminho junto ao rio, levando a comida aos animais, ela retorna. Retorna à bondade. Ao cuidado. À caridade. Aos atos desapegados de si, que servem apenas os outros. Não espera nada. Recebe carinho. Mas não o espera. Não vai porque o espere. Vai porque quer dar. Porque quer dar-se. Tudo o que recebe é lucro.

 

Tem um sorriso quente no rosto, embora esteja frio. E tira as luvas com gentileza para receber os amigos do costume. E os novos. E quem vier. Não lhes dá nomes. Não lhes dá nomes porque não pode levá-los para casa e não quer apegar-se. Não quer apegar-se mais, isto é... Eles, por outro lado, sabem o nome dela. Chamam-na todos ao mesmo tempo. E eu, que só observo. Que não a conheço. Fico assim a saber que ela é a senhora Miau.

 

A senhora Miau coloca cuidadosamente comida nas taças improvisadas. Água nas taças improvisadas. Deposita duas ou três festas entre as orelhas alegres de cada um. Deixa um comentário solto. Não sei o que lhes diz. Mas sei que, na sua condição alegadamente irracional, eles parecem parar para ouvir. Lembro-me de poucos humanos que o façam. Parar para ouvir.

 

Orientando a atenção para a comida deixada, deixam à senhora Miau cabeçadas breves e miados suaves. Com eles e o seu sorriso quente, ela volta a colocar as luvas nas mãos, agora frias. Faz o caminho inverso, com a mala mais leve e o peso da idade.

 

Passou o Natal e o Ano Novo sozinha. Dá para ver no seu rosto cansado que os passou sozinha. Dá para perceber nos passos arrastados que os passou sozinha. Dá para ver, nem sei como, traços de solidão nos jeitos de caminhar. Ainda lança um olhar aos amigos de bigodes. Obriga-se, talvez pela centésima vez, a não lhes dar nome. Lembra a si mesma que, daí a alguns anos, já não existirá para dizer os nomes deles a outrem. Fica triste porque não sabe se, então, alguém lhes dará de comer.

 

Não houve prendas no seu Natal e a velha televisão tanto dá como não dá. Por isso não a liga. Ouve antes o rádio à noite. Dá fados e discos pedidos com músicas do seu tempo. Não tem pachorra para as notícias. Então, ninguém lhe lembrou que ser boa é coisa do Natal. E, sem o saber, ela continua a retornar a essa arte. A de o ser. Só porque o é. Sem que exista prazo para ser.

 

Vendo-a a afastar-se, penso que talvez devêssemos todos pensar os dias como se valessem todos o mesmo. Retornar. Já que é para retornar. Retornar. Mas retornar como ela retorna, diariamente, a essa arte de se ser melhor.

 

 

  

Depois do Natal, as resoluções de Ano Novo... e depois delas, o retorno. O retorno à falta de empatia, ao egoísmo, ao olhar sobre o umbigo. O retorno ao colocar na nossa própria taça o alimento da superioridade. O retorno à recusa de tirar as luvas seja por quem for.

 

É tudo muito bonito no Natal, quando somos todos boas pessoas. É tudo maravilhoso no Ano Novo quando fazemos resoluções sobre transformar o Natal numa época permanente.

 

Mas, e se fosse sempre assim? E se este ano fosse diferente? É este o ano em que muda? Será que, se eu perguntar, me dizem que sim? Não importa! Não vou perguntar... ainda faltam três meses inteiros para o Dia das Mentiras...


  Marina Ferraz




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