terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Mar à porta

 


“Não tenho medo de tempestades, pois elas me ensinam a navegar.”

- Louisa May Alcott

 

 

Avisaram-me que não atravessasse a soleira da porta. Fizeram isto com gestos. Alertaram-me para a tempestade. Encarcerando-me dentro de casa, com inundações de expetativa. Eu tinha mapas e bussolas, astrolábio e balestilha. Uma vontade imensa de navegar. Arderam. Na fogueira das expetativas dos outros. Das vontades dos outros. Nesse perpétuo estado de achar que eu devia ser não sendo. Ou, pelo menos, não sendo eu.

 

Vi arder as minhas vontades na agrura constante da chuva que caía. Não percebi que as nuvens pesadas eram justamente geradas nesse querer que os outros queriam, tão diferentes do que eu queria e do que eu queria querer. Sentei-me junto à lareira, aquecendo as mãos e os pés nos sonhos que queimavam, lentamente...

 

Na maioria das vezes, frases soltas começaram por “eu não” ou “eu só”. Justificações ocas sobre as grilhetas de vento e chuva, que me prendiam à ação, aparentemente tão inocente, tão inócua, tão inofensiva. As justificações serviam-me justas e apertavam-me a alma. E o inofensivo das palavras quase me sufocou. Ia morrendo. Mas as palavras eram lenha. Queimando-me os sonhos. E dizendo. Mais. Ainda bem que não foste. Podias morrer.

 

Choveu durante meses. Ininterruptamente. Até que comecei a afogar-me no amplo das divisões da casa. Protegeram-me das inundações da rua, cimentando as janelas e prendendo tábuas de madeira à porta. Nenhum inimigo entrará. Palavras de proteção. Nenhuma tempestade será parte dos teus dias.

 

Demorei a perceber que amava a tempestade. Mais do que a proteção. Que preferia as nuvens aos tetos. Que preferia as águas às mágoas. Que preferia morrer no mar do que morrer de marasmo.

 

Um dia, arrombei a porta. Descobri que à porta, a tempestade não criara inundação, mas mar. Não tinha já mapas e bussolas, astrolábio e balestilha. Tinha cinza e oceano e horizonte. Avancei.

 

Ainda me disseram que não navegasse. Justamente porque chovia. Porque já não tinha mapas e bussolas, astrolábio e balestilha, mas apenas os restos de pó. Mas eu tinha aprendido a lição. Fui. Porque queria ir. E queria fazê-lo sem mapas e bussolas, astrolábio e balestilha. Porque me queria perder. Pelo menos mais uma vez. E estar perdido também é navegar... parar por medo é naufrágio.

 

Fui. Fui num veleiro desorientado, levada pelo destino e a vontade dos Deuses. Segui por esse mar à minha porta. Finalmente perdi-me. Finalmente encontrei-me.

 

 

Abençoado seja quem tem o mar à porta. E coragem de navegar.


 Marina Ferraz




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3 comentários:

  1. Anónimo21:04

    Escreves tão bem. Uma escrita tão pura, tão linda! Comecei a segui o teu trabalho anteontem quando vi uma notícia sobre ti! Como estudo em Coimbra fiquei curiosa e comecei a seguir o teu Instagram! Fiquei apaixonada pelos textos e decidi logo comprar o livro! Está na mesa de cabeceira pronto para o ler!

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  2. Parar por medo é naufrágio.... Frase do mês!

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