Uma sala vazia pode estar vazia. Uma sala vazia pode estar cheia. Uma sala cheia pode estar vazia. Uma sala cheia pode estar cheia. Está tudo certo, desde que o peito não esteja cheio de vazios...
Entro. São 70 metros quadrados. Uma cozinha. Uma sala. Um quarto. Uma casa-de-banho. A casa está cheia. Cheia de móveis. Móveis cheios de livros. Cheia de caixas. Caixas cheias de recordações, mantas e sapatos. Cheia de humidade. Humidade que se espalha. Paredes com humidade. Chão com gotículas ocasionais de condensação. Janelas embaciadas. A gata gosta da condensação na janela. Lambe-a como se a água da taça não servisse. As janelas ficam cheias de marcas de patas e línguas rugosas. Felizmente a casa está cheia de gata. É isso que a vai tornando um lar.
Com o tempo, móveis e caixas, roupas amontoadas que nunca uso e tralha de muitos anos começa a pesar-me como a toxicidade das conexões que quebrei. Nem todo o lixo é imundice. Algum é só perpetuação do passado. Mas o passado já foi. E eu não o quero em casa, da mesma forma que não o quero em mim. Então, vou esvaziando. Até que sobre só a roupa que eu uso. Até que fiquem só os tachos que servem. Até que fique só o que, olhando, me arranca um sorriso. A gata está confusa com o vazio e as caixas que enchi. Vendo-as desaparecer torna-se protetora do arranhador velho, tentando esconder essa peça de um metro de altura atrás dos seus míseros centímetros de fofura negra.
À medida que a casa vai ficando um espaço de essenciais, que se torna um lar quando a campainha toca e a gata adormece no meu colo, descubro tempo para pensar. Descubro o prazer de acender as velas que eram só decoração. Descubro como é bom usar os sabonetes e géis e sais de banho oferecidos e que se guardavam para o dia especial que, entretanto foi e passou e voltou a vir e a passar. A minha casa fica cheia de agoras à medida que se esvazia de ontens. O agora é presente por um motivo.
De olhos colados ao mundo – porque assim vivo e não sei viver de outra forma – apercebo-me de que as coisas são ainda o refúgio de muita gente. Noto-o no rosto alegre de quem compra artigos de saldo e na voz de quem lista tudo o que tem. Sinto que se prendem com grilhetas ao medo de as perder ou de não poder tê-las. Que procuram o novo como se fosse abrigo e, nele, a confiança que não têm, o respeito e a valorização que lhes falta. Penduram o seu próprio valor nas roupas de marca, nos acessórios da moda, nos artigos para a casa. Querem sentir-se parte de alguma coisa. E são. São parte das coisas que desejam, pelas quais lutam e que lhes comem o eu que seriam, se as coisas não fossem o seu epicentro.
As pessoas adoram coisas. E eu, que embora não seja a maior fã de coisas (ou de pessoas, em alguns dias), vou percebendo que nada nos fica realmente. Olho para o que fica nesse auto de fé que vou dando às coisas, à medida que me torno cada vez mais minimalista. Dou por mim a olhar para diários antigos, para poemas antigos, para cadernos e cadernos de história sobre a pessoa que fui, perpetuados sem motivo. Acendo a lareira. Deixo que ardam e respiro fundo. Tão mais leve. Saiba eu ter a sabedoria entre o que é essencial e o que me pesa. Peço. Saiba eu ter a sabedoria de distinguir entre o que me é fundamental carregar e o peso morto que me abranda.
Uma sala vazia pode estar vazia. Uma sala vazia pode estar cheia. Uma sala cheia pode estar vazia. Uma sala cheia pode estar cheia. Está tudo certo, desde que o peito não esteja cheio de vazios... Eu estou a deitar fora o que me deixa sem mim. São 70 metros quadrados. Uma cozinha. Uma sala. Um quarto. Uma casa-de-banho. A casa abre espaços que estavam cheios. Agora parecem vazios. Mas a gata vem para o meu colo. A campainha toca perto da hora de jantar. Cozinhei com amor e servi um vinho – daqueles que talvez tivesse guardado outrora – porque acho que hoje, como ontem e amanhã, é um dia especial. São 70 metros quadrados de uma casa tão cheia de sentidos que parece um lar.
Disse alguém que “as coisas mais importantes não são coisas”. Eu também acho que não são. Mas vou manter o arranhador... pelo sim, pelo não.
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Conheci hoje a escrita da Marina (Raquel, na minha memória) adida há muito tempo. Estava escrito nas estrelas o encontro com as suas palavras. Fiquei fã!
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