Depois do Natal, as resoluções de Ano Novo... e depois delas, o retorno.
Voltamos ao mesmo. Voltamos sempre ao mesmo. Dizemos que não vamos voltar. Mas voltamos. Ao mesmo. Precisa e inequivocamente o mesmo. Porque a memória humana é curta e televisão deixa de nos recordar, em horário nobre, que ser uma boa pessoa importa.
Então, depois do Natal. Dos gestos de Natal. Das prendinhas de Natal. Dos votos de Natal. Da caridade natalícia e da atenção redobrada, pintada de eufemismos toscos, sobre quem vive a guerra, a pobreza, a fome... Depois do Ano Novo e das resoluções sobre ser melhor, sobre ser no ano vindouro o que faltou ser no presente... depois de tudo isso, o retorno.
Todos os dias, quando faz o caminho junto ao rio, levando a comida aos animais, ela retorna. Retorna à bondade. Ao cuidado. À caridade. Aos atos desapegados de si, que servem apenas os outros. Não espera nada. Recebe carinho. Mas não o espera. Não vai porque o espere. Vai porque quer dar. Porque quer dar-se. Tudo o que recebe é lucro.
Tem um sorriso quente no rosto, embora esteja frio. E tira as luvas com gentileza para receber os amigos do costume. E os novos. E quem vier. Não lhes dá nomes. Não lhes dá nomes porque não pode levá-los para casa e não quer apegar-se. Não quer apegar-se mais, isto é... Eles, por outro lado, sabem o nome dela. Chamam-na todos ao mesmo tempo. E eu, que só observo. Que não a conheço. Fico assim a saber que ela é a senhora Miau.
A senhora Miau coloca cuidadosamente comida nas taças improvisadas. Água nas taças improvisadas. Deposita duas ou três festas entre as orelhas alegres de cada um. Deixa um comentário solto. Não sei o que lhes diz. Mas sei que, na sua condição alegadamente irracional, eles parecem parar para ouvir. Lembro-me de poucos humanos que o façam. Parar para ouvir.
Orientando a atenção para a comida deixada, deixam à senhora Miau cabeçadas breves e miados suaves. Com eles e o seu sorriso quente, ela volta a colocar as luvas nas mãos, agora frias. Faz o caminho inverso, com a mala mais leve e o peso da idade.
Passou o Natal e o Ano Novo sozinha. Dá para ver no seu rosto cansado que os passou sozinha. Dá para perceber nos passos arrastados que os passou sozinha. Dá para ver, nem sei como, traços de solidão nos jeitos de caminhar. Ainda lança um olhar aos amigos de bigodes. Obriga-se, talvez pela centésima vez, a não lhes dar nome. Lembra a si mesma que, daí a alguns anos, já não existirá para dizer os nomes deles a outrem. Fica triste porque não sabe se, então, alguém lhes dará de comer.
Não houve prendas no seu Natal e a velha televisão tanto dá como não dá. Por isso não a liga. Ouve antes o rádio à noite. Dá fados e discos pedidos com músicas do seu tempo. Não tem pachorra para as notícias. Então, ninguém lhe lembrou que ser boa é coisa do Natal. E, sem o saber, ela continua a retornar a essa arte. A de o ser. Só porque o é. Sem que exista prazo para ser.
Vendo-a a afastar-se, penso que talvez devêssemos todos pensar os dias como se valessem todos o mesmo. Retornar. Já que é para retornar. Retornar. Mas retornar como ela retorna, diariamente, a essa arte de se ser melhor.
Depois do Natal, as resoluções de Ano Novo... e depois delas, o retorno. O retorno à falta de empatia, ao egoísmo, ao olhar sobre o umbigo. O retorno ao colocar na nossa própria taça o alimento da superioridade. O retorno à recusa de tirar as luvas seja por quem for.
É tudo muito bonito no Natal, quando somos todos boas pessoas. É tudo maravilhoso no Ano Novo quando fazemos resoluções sobre transformar o Natal numa época permanente.
Mas, e se fosse sempre assim? E se este ano fosse diferente? É este o ano em que muda? Será que, se eu perguntar, me dizem que sim? Não importa! Não vou perguntar... ainda faltam três meses inteiros para o Dia das Mentiras...
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