terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Algo que eu não goste

 


...essa é uma das muitas coisas que gosto em ti. – olhas-me, perguntas – quais são as outras? – Deuses! Olho-te e a resposta está no reflexo de ti nos meus olhos. Inteira. – Na verdade – respondo – ainda estou à procura de algo que não goste. Os teus olhos abrem de espanto. E eu espanto que te espantes. Nunca me senti mais transparente.

 

 

 

Olhaste-me pela primeira vez. Quando me olhaste pela primeira vez, eu estava quebrada e tu também. Mas tu não o sabias. E eu não to disse. Eu não o sabia. E não mo disseste. Sabíamos ambos que a vida era difícil. Apenas isso. Apresentámo-nos casualmente. Ou deixámos que o fizessem por nós. Deixámos o difícil no bolso. Lancei-me à profecia autodeterminada de uma arte que não era a minha. E lembro-me de pensar como seria, aos teus olhos, toda a minha incompetência. Só que, quando olhavas para mim, não havia traço de juízo. E, claro, como julgar o que não se conhece? Mas não era apenas isso... porque, de alguma forma, eu sabia que vias algo debaixo da minha pele. Ou seria no meu movimento? Ou seria nas minhas palavras? Senti que era transparente nos teus olhos e que, ainda assim, não me julgavas. E pude ser livre. Livre por entre uma prisão que talvez soubesses – por intuição - que eu tinha.

 

A debilidade e as chagas invisíveis que trazemos dentro são, muitas vezes, caminho para a efemeridade do corpo. E foi assim – indisposta e com alguns queixumes breves nos lábios – que conheceste de mim a fragilidade. Olhando-me, com esses olhos que atravessam a fronteira-pele, nunca senti que me achasses fraca. Não houve traço de condescendência. Não foste mais brando nem indulgente. De ti, apenas compreensão e equidade. De uma forma tão natural e simples que era fácil. O trabalho. A conversa. A pausa inesperada para comer – sem fome – e descobrir que, afinal, o alimento me dava a energia que faltava ao corpo e à alma.

 

Daí à descoberta. À falta. Ao saber que ia sentir falta. Do trabalho. Do espaço. Das conversas. E, quando me permiti admiti-lo, de ti. Da falta, à palavra. Novamente a simplicidade. Conversas. Momentos. Sentir-me Cinderela no momento antes do soar da meia-noite. E serem três da manhã. E ficar tanto por dizer na despedida debaixo das luzes e das estrelas.

 

O som cantante de palavras cheias de especiarias e as especiarias que trouxeram palavras cheias de som. E, depois, o silêncio. Amadrinhado pela Lua Crescente e por todos os grãos de areia. Com o mar a fazer-se testemunha e a tomar forma na pele, vez-após-vez.

 

Descobrir o cuidado. Com as coisas. Com os outros. Contigo. Com a vida. Com ser. Encontrar sonhos-mundo que se pintaram de silêncios no entender do espaço da respiração. O sonho aqui e agora. E todas as casas de madeira nas florestas virgens. O pensamento fora do molde-social e a arte.

 

O sorriso mais bonito do mundo. Cabe tanta verdade nele que não pode escrever-se. E, ainda assim, não mais bonito do que alma doce – nunca dócil nem domável – que lhe fica dentro. E o riso, num gomo de toranja, que a adoça. E a candura, na sapiência erudita que se simplifica com muitos silêncios entre frases. A doçura e o carinho e o plano para amanhã, descomplicado.

 

Cortar a lenha já morta e abraçar as árvores que dançam. Alimentar os seres que rastejam. Cuidar o verde e fazer brotar vida das sementes inertes. Dar nomes às árvores – mesmo se anãs – e encontrar beleza até nos recantos mais improváveis. Atentar aos pormenores. E pintar luas e auroras boreais no teto para dormir com as estrelas.

 

 

...essa é uma das muitas coisas que gosto em ti. – olhas-me, perguntas – quais são as outras?

 

 

Não sei responder. São tantas...

 

É que às vezes, quando acordo, abro os olhos devagarinho. E o teu semblante está lá. Adormecido. Sinto que acordo para sonhar. Imagina só. Eu que agradecia à noite, quando o dia terminava, dou por mim a agradecer na manhã, quando ele começa. Deuses, não sei como é que isto aconteceu. Como tive tanta sorte. Mas obrigada por mais um dia.

 

 

Acredita. Ainda estou à procura de algo que não goste. Procuro. Procuro mais um bocadinho. Por algo que não goste em ti. Mas é muito difícil, sabes? Não gostar de ser feliz!


 Marina Ferraz




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