Toquei o azar às portas da casa da sorte. Mas as pessoas não
ouviram. Passaram por aí, como passa o tempo. Passando. Na inevitabilidade
infalível de quem pensa que não existe outra forma de passar. Com a indiferença
de olhos postos no asfalto ou nas pedras sujas do chão.
Toquei. Toquei mas a música não encheu as ruas, demasiado
atulhadas de coisa nenhuma. Por isso, embora tocasse, não tocava. Não toquei
ninguém nem coisa alguma. Não havia espaço nas ruas para outro som que não o da
apatia.
Toquei o azar às portas da casa da sorte. Alguns passaram.
Alguns entraram. Alguns chocalharam nos bolsos uma pobreza igual à minha.
Alguns iam vazios. Alguns iam cheios de nada. Outros cheios de si. Mas ninguém
me ouviu. Eu era da cor das paredes, da cor do chão. E, embora tocasse, eu
soava a nada porque ninguém parava para ouvir. Para me ouvir. Para se ouvir. As
pessoas simplesmente passavam. Assim... passando. Haverá outra forma?
Toquei. E, embora os olhares de soslaio optasse por ser
cegos, eu continuei a tocar. Chamaram-me mendigo, pedinte. Ouvi o rumor:
"devia arranjar trabalho". Toquei. Apesar dos rumores e da
indiferença e da surdez. Toquei para as pedras da calçada. Chamei-lhes irmãs.
Toquei para elas porque apenas elas me conheciam a música e o destino de não
ser mais do que pisado pela multidão alheia.
Toquei. Toquei o azar às portas da casa da sorte. As mãos
dormentes do frio. A alma dormente da indiferença. As pessoas dormentes, não
sei porquê. E, nas ruas cheias, pessoas vazias passavam, deixando-me aos pés o
estojo vazio e o coração quebrado.
Olhando para as pessoas, senti o ímpeto de tocar para
sempre. De tocar até que me ouvissem. De ficar ali até os dedos congelarem,
entre sopros e o meu olhar vítreo virar pedra, calcificar.
E toquei. Toquei a dor e a amargura e o desespero nas ruas
onde só passava, passando, quem não podia ouvir ou entender o que não ouvia.
Toquei enquanto a música ecoava no vazio
de tanta gente. Toquei enquanto a rua se enchia de vazio e se esvaziava de
novo.
Era noite. Toquei para as estrelas. Toquei para a lua.
Toquei o azar às portas da casa da sorte.
As ruas vazias, onde pessoas vazias já não estavam. O estojo
vazio. O estômago vazio. O sonho vazio de mim.
Arrumei as minhas coisas. Arrumei o sonho. Arrumei a
esperança. Arrumei as gentes que povoavam as ruas. Tinha tocado o azar às
portas da casa da sorte.
De meu, levava agora a música. E o estojo vazio, os bolsos
vazios, o estômago vazio. Mas sorri. Não tenho a alma vazia, nem os olhos
cegos, nem vou como o tempo, andando. Há estrelas no alto. E elas ouvem até
quem toca o azar às portas da casa da sorte.
Marina Ferraz
Marina Ferraz