terça-feira, 29 de agosto de 2023

Avec um peu de saudade

 


Veio ainda com a mala atrás, atirando-a para fora da bagageira do carro sem cuidado e espreguiçando-se levemente, para tirar a tensão dos ombros. Olhou em redor. E sorriu. Com os lábios também. Mas mais com o olhar, que procurava, nas paredes velhas das casas, os mais ínfimos pormenores. Para os decorar. E, quem sabe, levar consigo quando tornasse a carregar o carro.

 

A matrícula era francesa. Tal como o sotaque que teve ao dizer à esposa, que carregava nos braços a menina, ainda pequena. “Allez”. Subiram os degraus da casa e bateram à porta. E logo os passos corridos no seu interior transformaram o silêncio da rua num fogo-de-artifício tocado a sapatos de sola de borracha e alegria. Abriu-se a porta. E dela se lançaram dois braços. E esses dois braços enlaçaram o pescoço dele, num verdadeiro salto em altura, com lágrimas correndo dos olhos. “Chegaste, chegaste. Entra, entra. E tu também. Passa cá a menina. Que linda! Que linda!”. Uma repetição eufórica. Simples. No fechar da porta, que deixa lá fora os cartazes políticos tristes.

 

Da porta para dentro, ninguém sabe o que se passa. Mas desconfia-se. É um sentimento comum pelas aldeias de Portugal, mesmo noutras que não esta, plantada no interior centro do país. É um sentimento de palavras francesas mas com uma alma lusa. E que tem mais luz do que toda a vanguarda parisiense.

 

Mas esta é uma história que não começa aqui. Com a chegada deste casal e da sua filha, que nasceu no estrangeiro. Esta é uma história começa antes de haver esta filha. Antes de este casal se conhecer. Antes de eles terem nascido. Esta história começa com uma tradição que, desde sempre, levou os portugueses ao mundo, à procura de outras aventuras, outras sortes, outras vidas. Uma tradição que criou dois alicerces que sustentam a nossa cultura: a necessidade de ir e o desejo de voltar.

 

Desta história nasceu muito do que vemos nas nossas ruas: o olhar posto no mundo, a hospitalidade, o pessimismo e a pressa. Desta história, nasceu o fado que se canta e a palavra sem tradução que nos mora nos lábios, nas almas, nos corações: saudade.

 

Antiga, esta é uma história que não se esgota e que é, talvez, para contar no verão. Em agosto. Porque é em agosto que nos tornamos assassinos voluntários e loucos, enfeitando as ruas e contratando artistas para celebrar a Morte. Somos todos culpados, em agosto, de querer matar. Matar essa palavra sem tradução. Matar a saudade.

 

Matamos a saudade assim. Chegando, atirando a mala ao chão e palavras francesas uns aos outros, batendo à porta onde dois braços nos recebem num embalo caloroso e chorado, bebendo vinho caseiro de copos plásticos junto ao palco improvisado atrás das igrejas.

 

A noite cai. As pequenas iluminações acendem, conferindo magia às fitas mal postas sobre os estacionamentos onde, agora, se servem comidas e bebidas. Canta-se música popular. Nem sempre de qualidade. Porque a música não importa. Importa que se ria e que se dance. Que se partilhe o momento. É assim que se mata a sede, com vinho. O tédio, com dança. A saudade, com conversas. E há risos permeáveis, entre canções. Gritos bilingues e histéricos. Ninguém se importa com a balbúrdia. Há reencontros. Com familiares. Com amigos. Com pessoas que dizem “alors? Há tanto tempo, longtemps, longtemps!”.

 

Sim! Em agosto, as conversas portuguesas fazem-se assim: metade em português, metade em francês, sempre num clima festivo. Critica e reforço palmilham as mesmas ruas. Uma espécie de teimosia caricata das gentes da terra. E quem não entender... entendesse!

 

As vozes a duas línguas trazem os olhos de quem regressa. Verão após verão, esses são os olhos onde a tenacidade evidente faz questionar as razões da ida.

 

Perguntei, um certo dia, a outro rapaz, em tudo parecido com este que hoje chegou e reviu a mãe, qual tinha sido a melhor parte de partir. E a resposta, que não tardou, era poesia pura e rural, nos lábios meio toscos: “voltar”.

 

É um sentimento comum. A saudade. Essa que não tem tradução. Porque “ter saudade” é mais do que “sentir a falta”. “Ter saudade” é uma espécie de vazio permanente, formado nas paredes da alma e que espeta, como espada, a cada bater do coração, quando a distância acontece.

 

Por isso, os portugueses vão. Por isso voltam. Ano após ano. Sentem saudade. Voltam. Para voltar a partir. Deixam na porta braços a acenar e lágrimas. Faz parte de nós. Os braços. As lágrimas. A saudade que se planta, que se colhe e que se mata em agosto. Faz parte de nós e entra-nos na pele porosa, chegando aos ossos.

 

Imagino que ele carregue o carro. E vá. Mas não é a ida. É a promessa que já fica, nos braços a acenar. Do novo regresso. Da nova festa. Dessa forma que é nossa de viver com a saudade. E de matar a saudade. Sem que ninguém seja condenado por isso.

 

Fico a desejar que o ano passe. Para que a saudade se mate novamente. Mas na rua há cartazes políticos a falar de um futuro que lembra o passado. Na rua da minha inocência fica-me um pedido extra. Que não matem, antes disso, um Portugal que mereça saudade. Que não matem, antes disso, Portugal.


   Marina Ferraz




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terça-feira, 22 de agosto de 2023

O simples

 


Trilhei muitos caminhos de exuberância. Ociosidade. Luxo. Aparato. E houve muitos risos presos nesse excesso. Não minto. Houve. Houve o prazer dos sabores mais fortes. Das músicas ininterruptas. Dos cocktails onerosos. Das danças exaltadas. Dos tetos em frescos e pormenores leves com arestas debruadas a ouro. Mas tudo isso é manobra de diversão na alma. Mata a gula de vida. Não alimenta. No fim, a resposta foi. É. Sempre a mesma.

 


 Algures, um pássaro entoa uma canção alegre. Longe, longe. Saudando o sol que atravessa as folhas e cria pequenos desenhos no solo. Galinhas bicam o alimento e pintainhos correm atrás da mãe e piam - piam alto – se ela se afasta. O vento cria um restolhar lento e leve da folhagem, que soa a uma respiração viva da terra. Os peixes dançam nas lagoas, em cardumes calmos e serenos. Uma queda de água traz a água fresca das nascentes. O ar tem um fresco natural. E há Amor. Com todas as letras do alfabeto, escrito nos eventos mais simples do quotidiano.

 

Fecho os olhos nessa exuberância do simples. É um luxo diferente. Um aparato diferente. Feito do sabor das amoras silvestres, filhas das silvas que ninguém arrancou. Feito das canções permanentes na voz de seres cuja vida ninguém ceifou. Feito do sumo da águas frias e férreas. Feita das danças das árvores e dos remoinhos de terra seca junto ao solo. Feito de tetos de céu e de pormenores leves com arestas debruadas a nuvem e flor.

 

Saciada, a alma reencontra-se consigo mesma. Redescobre que tem vida dentro. Rejubila com a simplicidade das coisas. Fala do Divino. E é parte dele.

 

As palavras parecem todas poucas. As que sobram – essas poucas – parecem gastas. Porque a Natureza se renova a cada segundo e a linguagem não. Vai lenta e não tem senão ajustes feitos por eruditos que nunca souberam expressar o simples do idioma mundano e natural.

 

Quero fundir-me com a terra. Deixar os pés ganhar raízes. Despir-me de roupas e conceitos sociais. Ser. Só ser. Parte deste universo que é pleno e justo. Pleno e bom. Pleno.

 


Não quero matar a gula da vida, da alma, mas alimentá-las. No fim, a resposta foi. É. Sempre a mesma. É o simples. É no simples. Que está a abundância. É nele que mora o derradeiro luxo. O pássaro canta. A cascata cai. A água corre. O sol aquece-me o rosto. Ganhei, penso eu, a lotaria do mundo.



    Marina Ferraz




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terça-feira, 15 de agosto de 2023

Pensamentos soltos IV: Paz Podre

 Fotografia de Pedro Fonseca

A minha avó era uma mulher de fé. A sua igreja ficava num dos seminários de Coimbra. No terreno, uma pequena horta e pomar dava, por vezes, em excesso. Nada se estragava. Os devotos levavam sempre mais do que a homilia nos ouvidos. Levavam sacos nas mãos, com fruta comprada por preços meramente simbólicos. Em alguns casos, o padre chegava a oferecer, para que não se estragasse.

Lembro-me de estar em casa, pagã como sou, e da entrada sorridente dela, pousando um saco na mesa.

- Hoje, na igreja, deram-me tangerinas.

E logo o meu humor sobrepôs o politicamente correto.

- Então?! Acabaram as hóstias?

Ela olhou-me chocada durante alguns segundos. Depois riu-se. Almoçámos. A leveza de quem encontra a fé na partilha do Amor. Porque apenas o Amor é sagrado.

 

 

 

Não é muito frequente que as igrejas sejam como aquela que a minha avó frequentava. Dos meus tempos de frequência obrigatória nesses templos que me destinaram sem que os escolhesse, lembro-me mais vezes de me pedirem que desse algo, fosse tempo ou dinheiro, do que de me darem alguma coisa.

Lembro-me também da fila dos condenados nas ruas de Roma. Pedintes estendendo mãos, quando as tinham. Rastejando no chão sujo da cidade. Isto, até à orla de um Vaticano limpo. As beatas que povoam o chão da Praça de São Pedro não são de cigarro. E os pobres também não sujam a paisagem, posto que não podiam, pelo menos então, cruzar essa fronteira do alegado divino.

 

 

As coisas mudam. Melhoram. São positivas. É o que me dizem. Como o presidente disse, quando destacou que nos portámos todos exemplarmente bem: “os católicos e os outros”. Coisa da raça. Essa que, em tempos, tapou bocas. A mesma que desenhou estrelas nos braços dos judeus. Quando eram os alemães e os outros. O “outro” é imagem do problema. Não merece nome. Não tendo nome, não existe. Referência de corrida. Esquecida antes de ser lembrada. Deixe-se o espaço para a paz.

 

 

A minha irmã acredita devotamente na mensagem que fica nas linhas do que é dito e eu amo-a profundamente por isso. Gostava de não cair tantas vezes no fosso das entrelinhas e das entre-palavras. Dizem-me cínica. Comparativamente com ela – que crê, apesar de – eu sou. Talvez ser cínica ainda seja melhor do que ser os outros. Mas sou ambas as coisas. Lembrando que fui a menina a passear o saquinho das oferendas, largadas por mãos beatas. Tão bonitinha, com caracóis e vestidinho de folhos, a incentivar os pobres a dar dinheiro para os pobres-ricos da instituição mais abastada do mundo. Que orgulho me lembro de ter, com o som tilintante das moedas no saquinho vermelho, sem notar que o pedinte que se sentava à porta tinha a caneca metálica livre dessa canção. Não lhe estava destinada a paz nem a redenção. Isso não é coisa para quem tem o estômago vazio e um teto de estrelas à noite.

 

 

Dados oficiais dizem que, em 2021, 9,8% da população global passa fome e 29,3% se encontra numa “posição de insegurança alimentar moderada ou grave”. Felizes os convidados para a Ceia do Senhor! Porque os outros não foram convidados para a ceia. De nenhum senhor. E, enquanto rebentam as guerras que outros senhores fazem, discursos populistas sobre a paz são feitos dentro de igrejas e na mesa de refeição das famílias a quem nunca faltou o abençoado pão.

 

Perdoem o cinismo. Tropecei logo nas pedras do Genesis e caí no que fica entre as palavras alegadamente divinas escritas por homens. Vi pouco de divino nelas. Ou de humano, para o que conte...

 

Gostava de ser mais como a minha irmã, que acredita. Imagino que, de facto, carregar no colo a paz de um mundo melhor, colhida numa qualquer homília, seja uma espécie de “tudo”. Mas o mundo está cheio de “nada” para muita gente. E eu não fui abençoada com a cegueira que deus (propositadamente despido de inicial capitular) vai dando aos tais e negando aos outros.

 

 

O troco destas palavras é quase sempre a da enaltecida exceção. Ainda bem que as há! A minha irmã – catequista e católica – é uma delas. A igreja onde davam tangerinas à minha avó (seria em vez de hóstias?!?) talvez fosse outra. Gostava que a paz delas, que vem das mãos delas, que se dá pelas mãos delas, fosse a paz do mundo. Mas a paz que se vende na maior parte das igrejas não é uma paz para todos. Não tem o preço simbólico das tangerinas. Também não tem a sua frescura.

 

Se descascarem essa paz, como eu descasquei as escrituras. Se descascarem essa paz, como eu descasquei as ações além das escrituras. Se descascarem essa paz, como eu descasco os atos efetivos da igreja. Se descascarem essa paz, como eu descasco os atos efetivos de tanta gente que se diz da igreja. Aí, será fácil ver com os olhos dos outros. É uma paz pobre. É uma paz podre. E está cara... 


    Marina Ferraz




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quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Pensamentos soltos III: A sombra

 




“O homem que planta árvores,

sabendo que nunca se sentará à sombra delas,

começou a entender o significado da vida.”

(Rabindranath Tagore)

 

 

Se a árvore tombada escrevesse um sonho antigo, diria, talvez - rebento ainda a estender as primeiras folhas com a preguiça, para expulsar os grãos de terra - que um dia sairia da sombra anciã das árvores grandes. No chão, moribunda, tem agora o mesmo tamanho dos rebentos que lhe escutam a história.

 

Da sombra cada vez maior da minha história – haveria de dizer – tinham nascido outras estórias. Algumas de amor, outras inusitadas e de guerra fria. Mas focaria as estórias de amor. Essas – diria – e só essas, valeram o tempo das flores e dos frutos. Ciclos inevitáveis de um caos muito humano, expressão do belo e arquitetas do futuro do mundo. Dignas de menção. E só.

 

Todo o humano ama a sombra. Diria a árvore caída aos brotos. Quando o tempo aquece, todo o humano ama a sombra. Mas o tempo muda. E a vontade segue esse tempo. E o caos do amor é ódio, por vezes, amenizado pelas máscaras. Isto, não diria já, para não assustar as crias da terra. Acrescentaria antes: todo o humano ama a sombra e todo o humano a teme.

 

Abençoaria os esforços dos pequenos rebentos com um suspiro. O vento entoaria esse sopro de madeira, removendo os últimos grãos das primeiras folhas das futuras árvores. E pensaria, triste mas silenciosamente: que tenham futuro e venham a sê-lo...

 

E o broto mais pequeno perguntaria: como se pode amar o que se teme? E a árvore tombada lembraria o egoísmo e a inveja. O desejo humano de que o outro não cresça, não vá ele ser obrigado, subitamente, a viver na sombra do sucesso alheio. Mas não o diz. Esboça um sorriso ténue no ranger da madeira velha. Frequentemente amor e medo juntam-se na mesma canção. Entenderás ao crescer. Amarás as tempestades que te regam e temerás que te destruam. Amarás o verão e temerás a seca. Amarás os homens e temerás o seu machado. Suspira. Deves temer o seu machado.

 

Em tempos, fora uma árvore num caminho. Sombra. Agora, árvore fora do caminho. Sobra.

 

Nada mais disse aos rebentos. Adormeceu. Se a árvore tombada escrevesse um sonho antigo, diria, talvez, que preferia os homens que entendiam o sentido da vida do que aqueles que, claramente, tinham somente sentido na morte e machados e serras e desapego...

 

O seu silêncio foi marcado com as lágrimas muito secas de um verão escaldante. Os caminhos desertos evitavam-se e as sombras eram abrigo divino de quem se aventurava nas ruas.

 

Como não servia para nada, foi cortada em pedaços e esquecida.

 

Viriam dias frios, e o calor seria também esquecido. Viriam dias frios nos quais se arrancariam brotos, feito ervas daninhas. Viriam dias frios, em que se cortariam árvores para alimentar lareiras.

 

Se a árvore tombada falasse e os rebentos tivessem sobrevivido, haveria de lhes dizer que o problema era esse. As pessoas esquecem com facilidade que amam a sombra, quando já não precisam dela...

 

 

Toda a gente gosta da sombra. Mas poucos o lembram.

 

 

Desmatamento. Incêndios. Destruição.

 

Toda a gente gosta da sombra.

 

Que triste será o Verão dos nossos netos...

 

 

Se a árvore tombada falasse, penso que concordaria...


 Marina Ferraz




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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Pensamentos Soltos II: Sobre a bondade

 


Fotografias de André Mascarenhas


 

“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.”(Génesis 1:28)

 

Leram?

 

Então, leiam novamente. Devagarinho. Ponderadamente.

 

Releiam, se necessário for.

 

Bem-vindos ao lugar exato onde todos os ensinamentos de meus pais, recebidos de seus pais, meus avós, e de meus avós, que os haviam recebido de seus pais, meus bisavós, caíram por terra.

 

Não me entendam mal... o parco conteúdo que nos leva até aqui já foi encarado com crítica. Mas a gota de água foi esta: “dominai (...) sobre todo o animal que se move sobre a terra.”

 

A minha avó tinha-me dito, num tom menos bíblico: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. Mulher sábia e bondosa, ensinou-me com gestos uma outra: a do cuidado com as pessoas, com as coisas, com os animais e, principalmente, com as flores e as crianças, as melhores coisas do mundo.

 

Foram muitos anos até que percebesse que a minha religião era outra. Mesmo depois de ter negado aquela à qual me prometeram sem pedirem consentimento. Foram muitos anos até que me assumisse irmã dos ventos e filha da Mãe Natureza, assim como sua irmã e serva, assim como seu fruto e semente. Mas esse caminho, no qual me fiz animal que se move sobre a terra, foi o mesmo no qual aprendi a diferença inerente entre amar e dominar, entre cuidar e dominar, entre servir e dominar, entre honrar e dominar. Este ensinamento, criou uma adenda (não errata) para o que a minha avó me dissera. “Diz-me como tratas os animais, dir-te-ei quem és.”

 

Filosofia aparentemente simples, mas nem sempre imediata, ela levou-me ao encontro de um deus muito concreto. Que devia morar em nós. Estar no meio de nós. E corações ao alto. A bondade.

 

Vejo facilmente dentro dos outros quando os observo no cuidado com os animais e a Natureza. O pior e o melhor do ser humano tende a enfatizar-se quando se   julga em posição de poder. Uma verdade que se estende a cargos laborais, também... mas isso é outro pensamento.

 

No trato com animais é fácil esquecer a máscara social e, por isso, mais evidente o que vai dentro. Falei já, em tempos, da Senhora Miau... e, como ela, felizmente, há outras. Gente de alma pura que os animais procuram porque têm mãos e gestos abnegados, onde o tratamento e cuidado diários não são serviço... mas expressão de amor.

 

Isto não é algo que nasce connosco. Alguns vão dizer que sim... mas eu não acho que seja. Acho que os processos de socialização – principalmente nos primeiros anos de vida – são o que nos ensina o nosso papel no mundo. E importa ensinar que não, não nascemos para dominar nada - nem deveríamos querer dominar nada - incluindo as lágrimas que tentam ensinar os rapazes a engolir - nascemos para amar e ser amados, olhando os outros e a Natureza e todos os seus seres de igual para igual. E, de igual para igual, honrando a alma de cada um, de cada ser, devíamos procurar a harmonia.

 

Vem de berço, mas não é “óbvio”. E, claro, toda a gente comete erros ao educar uma criança. Não existem manuais para a montagem de seres humanos. Alguns pais diriam “mas era bom”. Caros pais, não! Escutem: não há, nem devia haver! As pessoas não são móveis do IKEA para que as construamos passo-a-passo, homogéneas, com madeiras fracas e acabamentos pobres... as pessoas são vida e individualidade, complexidade e desconstrução. Vão sobrar parafusos e faltar peças... e está tudo bem! Ensinar-a-ser não é ensinar-a-ser-perfeito-segundo-a-norma. É só ensinar a ser... e não há garantias de nada, só intuição e estrada para andar!

 

Claro, nessa saga do ensinar-a-ser há muitas gafes. Mesmo sem ser mãe, eu sei que cometi muitos erros e alguns “acertos” a tentar ensinar-a-ser. Mas houve erros que nunca cometi! Acertei sempre, por exemplo, no primeiro passo. E por isso, partilho apenas esse, testado e verificado, certificado por gente-agora-grande que me honra dizer que ajudei a criar. Ensinem-lhes a bondade. O resto vem…

 

Poderia dizer: “Diz-me como tratas os animais, dir-te-ei quem és.”

 

Ou acrescentar: “Diz-me como tratas as crianças, dir-te-ei quem és.”

 

Ou dizer ainda: “Diz-me como encaras a primeira frase deste texto, dir-te-ei quem és.”

 

 

Mas o que importa não é quem és. Nem quem eu sou. Já o disse e repito: a pessoa que queremos ser é muito mais importantedo que a pessoa que somos.

 

 

Algures, aposto que a Senhora Miau alimentou os gatos de rua.

 

Algures, a mãe do André foi efusivamente recebida pelos cães.

 

Hoje recebi um beijo de um cavalo e um olhar charmoso de duas avestruzes, e mergulhei lado a lado com um cardume de peixes esverdeados. Tudo isto me fez sorrir.

 

Gosto de pensar que domino. Mas só isto. A arte de me melhorar aos poucos...

 

Porque me ensinaram a bíblia... e não colou... mas primeiro me ensinam a bondade. E o resto veio…


 Marina Ferraz




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