Veio
ainda com a mala atrás, atirando-a para fora da bagageira do carro sem cuidado
e espreguiçando-se levemente, para tirar a tensão dos ombros. Olhou em redor. E
sorriu. Com os lábios também. Mas mais com o olhar, que procurava, nas paredes
velhas das casas, os mais ínfimos pormenores. Para os decorar. E, quem sabe,
levar consigo quando tornasse a carregar o carro.
A
matrícula era francesa. Tal como o sotaque que teve ao dizer à esposa, que
carregava nos braços a menina, ainda pequena. “Allez”. Subiram os degraus da casa e bateram à porta. E logo os
passos corridos no seu interior transformaram o silêncio da rua num
fogo-de-artifício tocado a sapatos de sola de borracha e alegria. Abriu-se a
porta. E dela se lançaram dois braços. E esses dois braços enlaçaram o pescoço
dele, num verdadeiro salto em altura, com lágrimas correndo dos olhos. “Chegaste, chegaste. Entra, entra. E tu
também. Passa cá a menina. Que linda! Que linda!”. Uma repetição eufórica.
Simples. No fechar da porta, que deixa lá fora os cartazes políticos tristes.
Da
porta para dentro, ninguém sabe o que se passa. Mas desconfia-se. É um
sentimento comum pelas aldeias de Portugal, mesmo noutras que não esta,
plantada no interior centro do país. É um sentimento de palavras francesas mas
com uma alma lusa. E que tem mais luz do que toda a vanguarda parisiense.
Mas
esta é uma história que não começa aqui. Com a chegada deste casal e da sua
filha, que nasceu no estrangeiro. Esta é uma história começa antes de haver
esta filha. Antes de este casal se conhecer. Antes de eles terem nascido. Esta
história começa com uma tradição que, desde sempre, levou os portugueses ao
mundo, à procura de outras aventuras, outras sortes, outras vidas. Uma tradição
que criou dois alicerces que sustentam a nossa cultura: a necessidade de ir e o desejo de voltar.
Desta
história nasceu muito do que vemos nas nossas ruas: o olhar posto no mundo, a
hospitalidade, o pessimismo e a pressa. Desta história, nasceu o fado que se
canta e a palavra sem tradução que nos mora nos lábios, nas almas, nos
corações: saudade.
Antiga,
esta é uma história que não se esgota e que é, talvez, para contar no verão. Em
agosto. Porque é em agosto que nos tornamos assassinos voluntários e loucos,
enfeitando as ruas e contratando artistas para celebrar a Morte. Somos todos
culpados, em agosto, de querer matar. Matar essa palavra sem tradução. Matar a saudade.
Matamos
a saudade assim. Chegando, atirando a mala ao chão e palavras francesas uns aos
outros, batendo à porta onde dois braços nos recebem num embalo caloroso e
chorado, bebendo vinho caseiro de copos plásticos junto ao palco improvisado
atrás das igrejas.
A
noite cai. As pequenas iluminações acendem, conferindo magia às fitas mal
postas sobre os estacionamentos onde, agora, se servem comidas e bebidas.
Canta-se música popular. Nem sempre de qualidade. Porque a música não importa.
Importa que se ria e que se dance. Que se partilhe o momento. É assim que se
mata a sede, com vinho. O tédio, com dança. A saudade, com conversas. E há
risos permeáveis, entre canções. Gritos bilingues e histéricos. Ninguém se
importa com a balbúrdia. Há reencontros. Com familiares. Com amigos. Com pessoas
que dizem “alors? Há tanto tempo, longtemps, longtemps!”.
Sim!
Em agosto, as conversas portuguesas fazem-se assim: metade em português, metade
em francês, sempre num clima festivo. Critica e reforço palmilham as mesmas
ruas. Uma espécie de teimosia caricata das gentes da terra. E quem não
entender... entendesse!
As
vozes a duas línguas trazem os olhos de quem regressa. Verão após verão, esses
são os olhos onde a tenacidade evidente faz questionar as razões da ida.
Perguntei,
um certo dia, a outro rapaz, em tudo parecido com este que hoje chegou e reviu
a mãe, qual tinha sido a melhor parte de partir. E a resposta, que não tardou,
era poesia pura e rural, nos lábios meio toscos: “voltar”.
É
um sentimento comum. A saudade. Essa
que não tem tradução. Porque “ter saudade”
é mais do que “sentir a falta”. “Ter saudade”
é uma espécie de vazio permanente, formado nas paredes da alma e que espeta,
como espada, a cada bater do coração, quando a distância acontece.
Por
isso, os portugueses vão. Por isso voltam. Ano após ano. Sentem saudade. Voltam. Para voltar a partir. Deixam
na porta braços a acenar e lágrimas. Faz parte de nós. Os braços. As lágrimas.
A saudade que se planta, que se colhe e que se mata em agosto. Faz parte de nós
e entra-nos na pele porosa, chegando aos ossos.
Imagino
que ele carregue o carro. E vá. Mas não é a ida. É a promessa que já fica, nos
braços a acenar. Do novo regresso. Da nova festa. Dessa forma que é nossa de
viver com a saudade. E de matar a saudade. Sem que ninguém seja condenado
por isso.
Fico
a desejar que o ano passe. Para que a saudade
se mate novamente. Mas na rua há cartazes políticos a falar de um futuro que
lembra o passado. Na rua da minha inocência fica-me um pedido extra. Que não
matem, antes disso, um Portugal que mereça saudade. Que não matem, antes disso,
Portugal.
Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"
enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com
Sem comentários:
Enviar um comentário