terça-feira, 1 de agosto de 2023

Pensamentos Soltos II: Sobre a bondade

 


Fotografias de André Mascarenhas


 

“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.”(Génesis 1:28)

 

Leram?

 

Então, leiam novamente. Devagarinho. Ponderadamente.

 

Releiam, se necessário for.

 

Bem-vindos ao lugar exato onde todos os ensinamentos de meus pais, recebidos de seus pais, meus avós, e de meus avós, que os haviam recebido de seus pais, meus bisavós, caíram por terra.

 

Não me entendam mal... o parco conteúdo que nos leva até aqui já foi encarado com crítica. Mas a gota de água foi esta: “dominai (...) sobre todo o animal que se move sobre a terra.”

 

A minha avó tinha-me dito, num tom menos bíblico: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. Mulher sábia e bondosa, ensinou-me com gestos uma outra: a do cuidado com as pessoas, com as coisas, com os animais e, principalmente, com as flores e as crianças, as melhores coisas do mundo.

 

Foram muitos anos até que percebesse que a minha religião era outra. Mesmo depois de ter negado aquela à qual me prometeram sem pedirem consentimento. Foram muitos anos até que me assumisse irmã dos ventos e filha da Mãe Natureza, assim como sua irmã e serva, assim como seu fruto e semente. Mas esse caminho, no qual me fiz animal que se move sobre a terra, foi o mesmo no qual aprendi a diferença inerente entre amar e dominar, entre cuidar e dominar, entre servir e dominar, entre honrar e dominar. Este ensinamento, criou uma adenda (não errata) para o que a minha avó me dissera. “Diz-me como tratas os animais, dir-te-ei quem és.”

 

Filosofia aparentemente simples, mas nem sempre imediata, ela levou-me ao encontro de um deus muito concreto. Que devia morar em nós. Estar no meio de nós. E corações ao alto. A bondade.

 

Vejo facilmente dentro dos outros quando os observo no cuidado com os animais e a Natureza. O pior e o melhor do ser humano tende a enfatizar-se quando se   julga em posição de poder. Uma verdade que se estende a cargos laborais, também... mas isso é outro pensamento.

 

No trato com animais é fácil esquecer a máscara social e, por isso, mais evidente o que vai dentro. Falei já, em tempos, da Senhora Miau... e, como ela, felizmente, há outras. Gente de alma pura que os animais procuram porque têm mãos e gestos abnegados, onde o tratamento e cuidado diários não são serviço... mas expressão de amor.

 

Isto não é algo que nasce connosco. Alguns vão dizer que sim... mas eu não acho que seja. Acho que os processos de socialização – principalmente nos primeiros anos de vida – são o que nos ensina o nosso papel no mundo. E importa ensinar que não, não nascemos para dominar nada - nem deveríamos querer dominar nada - incluindo as lágrimas que tentam ensinar os rapazes a engolir - nascemos para amar e ser amados, olhando os outros e a Natureza e todos os seus seres de igual para igual. E, de igual para igual, honrando a alma de cada um, de cada ser, devíamos procurar a harmonia.

 

Vem de berço, mas não é “óbvio”. E, claro, toda a gente comete erros ao educar uma criança. Não existem manuais para a montagem de seres humanos. Alguns pais diriam “mas era bom”. Caros pais, não! Escutem: não há, nem devia haver! As pessoas não são móveis do IKEA para que as construamos passo-a-passo, homogéneas, com madeiras fracas e acabamentos pobres... as pessoas são vida e individualidade, complexidade e desconstrução. Vão sobrar parafusos e faltar peças... e está tudo bem! Ensinar-a-ser não é ensinar-a-ser-perfeito-segundo-a-norma. É só ensinar a ser... e não há garantias de nada, só intuição e estrada para andar!

 

Claro, nessa saga do ensinar-a-ser há muitas gafes. Mesmo sem ser mãe, eu sei que cometi muitos erros e alguns “acertos” a tentar ensinar-a-ser. Mas houve erros que nunca cometi! Acertei sempre, por exemplo, no primeiro passo. E por isso, partilho apenas esse, testado e verificado, certificado por gente-agora-grande que me honra dizer que ajudei a criar. Ensinem-lhes a bondade. O resto vem…

 

Poderia dizer: “Diz-me como tratas os animais, dir-te-ei quem és.”

 

Ou acrescentar: “Diz-me como tratas as crianças, dir-te-ei quem és.”

 

Ou dizer ainda: “Diz-me como encaras a primeira frase deste texto, dir-te-ei quem és.”

 

 

Mas o que importa não é quem és. Nem quem eu sou. Já o disse e repito: a pessoa que queremos ser é muito mais importantedo que a pessoa que somos.

 

 

Algures, aposto que a Senhora Miau alimentou os gatos de rua.

 

Algures, a mãe do André foi efusivamente recebida pelos cães.

 

Hoje recebi um beijo de um cavalo e um olhar charmoso de duas avestruzes, e mergulhei lado a lado com um cardume de peixes esverdeados. Tudo isto me fez sorrir.

 

Gosto de pensar que domino. Mas só isto. A arte de me melhorar aos poucos...

 

Porque me ensinaram a bíblia... e não colou... mas primeiro me ensinam a bondade. E o resto veio…


 Marina Ferraz




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