terça-feira, 25 de julho de 2023

Pelo preço que a comprei

 


Fotografia de João Lamas

Há um motivo pelo qual quase todos os dias da semana terminam em “feira”. Portugal tem muito que se lhe diga no que diz respeito à transação de produto imaterial. Uma espécie de leva-e-traz, onde facilmente vemos as nossas próprias costas. Proponho uma nova técnica de regateio. Simples e que pode salvar vidas. Acreditem...

 

 

 

Chegam. Sentam-se. Se o bom dia veio, não deu tempo de reposta. “Sabes a...” insiram aqui qualquer nome... “não vais acreditar...” insiram aqui qualquer história mirabolante... “vê lá tu! E é só o que me disseram...” insiram aqui, por favor, um revirar de olhos, “mas eu nem sou de cusquice, estou-ta a vender pelo preço que a comprei.”

 

Os boatos são um caldinho. O diz que disse. O disseram-me que... a vida dos outros deve ser o único produto em segunda mão que não baixa de preço. Custa sempre o mesmo na boca de toda a gente. E, às vezes, o troco é a vida de alguém, a sanidade de alguém, o bem-estar de alguém. Mas os danos colaterais não (se) contam. Ficam na sombra. De lá atormentam...

 

Hipocrisia e intriga ácido-picantes, batidas com um garfo e levadas ao fogo em lume brando com duas ou três pitadas de pimenta aqui... e duas ou três pitadas de pimenta ali... ganhando condimento no boca-em-boca, até que seja sumarenta a picante o suficiente para interessar aos outros. Crocante na textura e sublime no palato, acalenta as conversas de refeições-mundo e deixa azia apenas em quem lhe é intolerante. E a inteligência ajuda, mas caso não se dê o afastamento em passo de gazela, não serve de antiácido. Não se pode des-ouvir o que se ouviu.

 

Como todo e qualquer hábito nocivo que se perpetua nos gostos inerentes da maioria, também o da partilha gratuita da vida dos outros se torna “normal”. Não lhe chamemos falta de respeito porque é tradição. E não a travemos para que não se censure a vontade coletiva. E não desrespeitemos o que, de forma tão evidente, faz parte da nossa identidade sociocultural.

 

Seria bom ver as pessoas defender a cultura e a sociedade da forma como defendem tradições bárbaras como a maledicência ou as touradas.

 

Seja como for. Chegam. Sentam-se. Se o bom dia veio, não deu tempo de reposta. Há um motivo pelo qual quase todos os dias da semana terminam em “feira”. Portugal tem muito que se lhe diga no que diz respeito à transação desse produto imaterial chamado boato, rumor, cusquice... Uma espécie de leva-e-traz, onde facilmente vemos as nossas próprias costas. Que ninguém se engane, julgando-se recetor e nunca protagonista das maravilhosas histórias de fel e pimenta.

 

Lá vem a frase. “Vendo-ta pelo preço que a comprei”. Não sei em quantas mãos esteve. Não sei em que estado está. Aposto que vem suja e estragada. Mas o preço é o mesmo. Caro, se me perguntarem...

 

Convém lembrar.

O preço a pagar são os outros.

Mas também somos nós.

 

Assim, proponho uma nova técnica de regateio. Da próxima vez que alguém disser “Vendo-ta pelo preço que a comprei”, tentarei apenas levantar os olhos para responder. “Dá-me um desconto”.

 

Pode ser que me poupem!


Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

Sem comentários:

Enviar um comentário