terça-feira, 11 de julho de 2023

A montra

 


Fotografia de Hélio Silver


A montra não pode ficar vazia. É essa a norma! A montra não pode ficar vazia. Fica nua. E, para quem passa, não há trajeto que não o de ignorar a nudez. Parariam para a ver. Mas só lhes sobra o tecido breve de sobre a pele. Temem que, se ficarem, acabem como os manequins. Nus. E seguem... escravos da necessidade, com os olhos no chão. Talvez lhes calhe a sorte de achar um cêntimo perdido, com o qual comprem inspiração para uma raspadinha mais tarde.

 

 

A alta-costura já não vende. Já não rende. As pessoas, de bolsos rotos, têm medo de fitar as vestes. Os olhos caem nos preços. Os preços são impeditivos. Já acabou o apoio com o qual o Estado fingiu ajudar as famílias carenciadas. O cheque era curto. Os impostos estirados. Sobrou mês no fim do salário. Como sempre.

 

A caixinha mágica disse que a dívida estava menor. Menor do que demais ainda é muito. Mas ninguém pensa nisso. Do ponto A ao ponto B, há a rua das montras. Mas as pessoas olham para dentro. Dentro, pensa-se na Dona Maria e no Senhor Joaquim da novela das nove, e se a intrusa da vizinha conseguirá cumprir os seus planos maléficos de os separar, agora que ficou grávida de um extraterrestre. Dentro, pensa-se se o Benfica vai vencer o jogo contra o Sporting, que esses dérbis podem render um bom dinheiro nos sites de apostas desportivas, ainda que já se tenha gasto uma pequena fortuna para se ganhar umas dezenas de euros. Olhando para dentro, ninguém nota que os bustos das montras estão nus. Ninguém nota que os manequins das montras não têm cabeça. Talvez a tenham perdido a pensar na novela e no futebol...

 

A mão que cria a agenda dos media é a mesma que faz as montras da rua. Cada telespetador um manequim, ao qual se tiram vestes e esperanças. Cada telespetador um manequim guilhotinado. Cada telespetador um peão no jogo cáustico dos reis. Os telespetadores aproveitam o cateter televisivo para injetarem banalidades e soltam-se dos cabos digitais apenas porque a hora dita que se arrastem para os mercados de escravos onde aprendem a anuir como os cachorrinhos de bagageira. Passam na rua das montras.

 

 

A caixa é de vidro e poderiam todos ver a nudez. Se tivessem olhos. Mas sabemos bem que só se põe na montra o que é desejável que se veja. E ter cabeça está fora de moda. Quem a tem vê. Escuta. Fala. Pensa. Não é desejável que se venda essa ideia. Então, fica o corpo esculpido nos padrões da norma. Devidamente encaixado e posicionado. Para que se venda o status quo a preço de saldo e se ofereça de brinde a miséria.

 

 

A montra não pode ficar vazia. É essa a norma! Mas convém que a cabeça fique. A alta-costura já não vende. Já não rende. Mas a insensibilidade e a falta de pensamento crítico valem milhões às altas fortunas.

 

 

A caixa é de vidro e poderiam todos ver a nudez. Mas mesmo quem olha já não sabe se são manequins... ou o seu próprio reflexo.

 

 

Mas o que importa isso? A Dona Maria e o Senhor Joaquim vão conseguir ficar juntos... e as odds dizem que hoje ganha o Benfica.


Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Pedro Antunes16:22

    a alma nunca ficará vazia... quanto aos corpos, nus, vestidos, estilhaçados pela vida... somos... tu e eu sabemos que seremos/ somos ... apenas estilhaços de alma arrancados à imaginação...mas isso é condição de ser poeta. não obstante para o comum dos mortais, entendo a validade da critica que fazes... mesmo que não tenhas medo de dizer que - o rei vai nú... porque cada vez mais sociedade é despojada daquilo que lhe é direito conquistado.

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