terça-feira, 29 de outubro de 2024

Encarregado de educação (uma carta)

Imagem gerada por I.A.

 

Exmo. Sr. Primeiro Ministro

 

Escrevo esta carta porque me sinto profundamente solidário com a sua sensação de descontentamento face à disciplina de Cidadania. Na verdade, esta preocupação é algo que trago comigo há muito tempo e que venho a silenciar pelo medo de represálias. Acredito, pois, que a média escolar do meu encarregado de educação possa ser afetada pela não aprovação na unidade curricular supramencionada.

 

Para que tenha uma noção do que me preocupa, destacarei os aspetos que me parecem mais relevantes neste contexto, desejando que a multiplicidade de temáticas que abordarei não seja demasiado ampla, tornando esta carta demasiado extensa e roubando o seu precioso tempo... bem sabemos que a tarefa de tentar manter um status quo propício às grandes economias e à autoridade do Estado nem sempre é fácil. Tentarei ser tão breve quanto possível!

 

O meu filho encontra-se atualmente no 9º ano, sendo este o seu terceiro ano de contacto com a disciplina de Cidadania. Há algumas semanas, devido a um trabalho de escola, recebemos os seus amigos para um trabalho de grupo. Eram dois rapazes, um caucasiano e lisboeta e outro de pele negra e com sotaque (não sei se nascido cá ou no estrangeiro) e uma moça brasileira que recentemente veio com a mãe viver para Lisboa. Assisti, em choque, à forma simpática como os recebeu à porta e fiquei aterrorizado quando, ao jantar, contou que o seu melhor amigo Marcos era homossexual e namorava com outro colega de turma, e se confessou, ainda, apaixonado pela rapariga brasileira, falando exaustivamente da forma como pretendia convidá-la para o cinema e levar-lhe um ramo de flores nesse dia. Quando falámos sobre a importância da proteção, caso o namoro se efetive, respondeu-nos, sorrindo, que sabe disso, mas ainda não se sente preparado para “voos tão altos”.

 

Esta não foi, ainda assim, a primeira vez que senti o impacto das noções que a escola implantou na mente do meu filho. No 7º ano, para que tenha noção, fomos obrigados a alterar as nossas rotinas e hábitos para integrar a reciclagem no nosso quotidiano e, no ano passado, quase que nos obrigou a ir votar, obrigando-nos, a mim e à mãe, a vestir roupa de sair e a abdicar de parte do nosso domingo que, como possivelmente acredita, é o dia do Senhor e não se deve macular com trabalhos...

 

Por causa da terrível ideologia que estão a passar à nossa criança, imagine, já nem sequer podemos caminhar pelas ruas lisboetas, sem parar para deixar esmola aos sem-abrigo ou sem ouvir, por quilómetros, como o direito à habitação e à saúde são direitos humanos que não estão a ser cumpridos... Além disso, este tipo de preocupação faz com que as suas leituras incluam livros que talvez sejam desadequados, sobre questões sociais e políticas, quando na idade dele eu só lia as aventuras dos Cinco e dos Sete...

 

Senhor Primeiro Ministro, as amarras ideológicas da Cidadania estão a desesperar-nos! Mais ainda porque, apesar de tudo isto, acreditamos verdadeiramente que a média do meu filho será afetada pela nota, que só poderá ser negativa. Afinal, veja lá bem, mesmo com tudo isto ele ainda não cumpriu os objetivos fundamentais da disciplina! Ainda não virou gay, ainda não começou a cometer vandalismo, ainda não se revoltou contra nós e ainda não iniciou precocemente a sua vida sexual...

 

Espero honestamente que, no futuro, consiga colmatar as falhas no sistema educacional, que mais não querem do que prender as crianças a terríveis amarras ideológicas! É que corremos o risco que estes miúdos se tornem bons cidadãos... e, quando votarem, tirem pessoas como você do poleiro a partir do qual prendem as pessoas à necessidade com amarras, sem tempo para ideologias que combatam a tirania.

 

Assinado,

Um encarregado de educação

 

P.S.: Como deve imaginar muitas das passagens desta carta são pura ironia. Quando saí, naquele domingo, por vontade própria e não obrigado pelo meu filho, embora ele aprove, fiz isso com muito orgulho... e não votei em si!


Marina Ferraz




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terça-feira, 22 de outubro de 2024

De compra em compra

 

Imagem gerada por I.A.

Nasci em Junho. Perdoem o narcisismo, mas começo o ano no mês do meu nascimento. O meu aniversário, esse não-feriado, foi, ao longo dos anos, mais um ponto-espelho de tudo o que vai indo de mal a pior com o mundo. Uma espécie de segundo Natal, que começam a celebrar ali à roda do dia da mãe e do 13 de maio... e que alguém acenda uma velinha, que de milagroso este texto nada terá... como bem sabem as entidades competentes, ou eu já teria sido vítima de um qualquer “acidente”...

 

Peço muitas vezes que não me deem presentes de aniversário pelo meu nascimento. Logo eu, que insisto em celebrar ao longo de 7 dias! Quero a pessoa presente e não o presente da pessoa. Quero como dádiva a partilha do momento e não o momento da partilha em dádiva. A pouco e pouco, desvalorizo tudo o que é físico. Sinto os objetos a comerem espaço nas divisões, como quem calcorreia o meu pensamento com uma catana.

 

Este é o dia em que presentes colocados nos meus dedos gratos entoam a sentença anual da nova corrida pelo gasto. Essa que me desgasta. Ainda mal passou o dia de abrir os olhos e já compram martelinhos e farturas de São João, compram as caríssimas férias no Algarve ou no estrangeiro, preparam tudo para garantir a melhor prenda do dia dos avós e gastam fortunas com o regresso às aulas. As lojas ajudam! Dizem que ajudam... Agências de viagens com promoções bombásticas. Entidades de crédito que dão todas as facilidades para qualquer eventualidade, incluindo a sua viagem de sonho. Lojas de roupa que garantem que nenhum jovem entre na escola usando – olhem que horror! – a roupa da coleção passada.

 

Começam as aulas e é hora de preparar o Halloween. Já há decorações e filmes novos no cinema. Já há fatos de fantasia. Já se vê nas ruas uma ocasional saia com morceguinhos, um chapéu de bruxa, dentes de vampiro, sem abrigo (ups, desculpem, texto errado...). E é importante que se comece a preparar o Dia das Bruxas ainda em setembro, sem esquecer as flores e velas para os cemitérios no Dia de Todos os Santos, porque em outubro as lojas têm de se organizar para o Natal. A época mais bonita do ano, onde tudo tem brilho e cor... principalmente as grandes corporações que guardam as moedas e notas verdinhas dos contribuintes: esses alienados que não sabem bem como pagar a renda e os impostos, mas investem fortemente nas decorações mais festivas e nas prendas mais dispendiosas. Folhetos e catálogos dão-nos promoções e sugestões e preços imbatíveis... a superficialidade está cara, mas os cupões ajudam! E, para os mais arrojados, aproveitar os preços de Natal para programar o Ano Novo também não está mal pensado, que é um gasto a mais para se ter um gasto a menos!

 

Vira o ano. 3, 2, 1!!! Feliz ano novo! O ano é novo, mas o hábito é velho... não se perca tempo, que é preciso fazer a reserva ideal para o dia dos namorados, não vão os restaurantes esgotar as suas mesas e levar ao término do amor puro e eterno de dois entes, que morrerão se não fizerem uma refeição inflacionada e mal servida.

 

Mas não! Não nos demoremos a pensar no amor, que amor é por quem nos deu a vida e é preciso comprar a prenda do dia do pai! E pensar que abril também está à porta e que é preciso compensar os nossos afilhados e explorar os nossos padrinhos, comprando ovinhos e amêndoas e coelhinhos, e consolas e smartphones novos. Os mais interventivos podem até aproveitar o embalo para comprar já os cravos plásticos para o 25 de abril que - sabe-se lá como! - conseguiu também tornar-se um feriado comercial. A ironia de se pagar a liberdade com liberdade... ficando sem ela.

 

A roda do ano anda bem oleada e vamos seguindo de compra em compra. Um crédito. Um crédito para pagar o crédito. Um crédito consolidado para ajudar com os vários créditos. Ginástica financeira impossível. E impostos que são sempre aliviados para o 1% que poderia pagá-los... e intensificados para quem se mata para os pagar. Contas vazias. Ilusão de conquista, prenda a prenda. E uma realidade que nos prende. À roda. A mesma. Aquela que interessa só aos que têm Natal todos os dias e a quem nunca falta nada!

 

Começamos a comprar o nosso funeral no dia do nosso nascimento e, mesmo assim, como salienta Fisher citando Fredric Jameson e Slavoj Žižek, "é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo". Olho o ano... poderíamos montar tenda nos centros comerciais, para ao menos poupar em combustível (já que voltou a subir!). É que até Cristo – dizem – morreu e ressuscitou passado três dias... só o filho da puta do capitalismo é que parece ser imortal.

Marina Ferraz




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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Universidade pública

 

Imagem gerada por I.A.

Lisboa, Setembro de 2030

 

A Faculdade Pública de Comunicação, única em funcionamento no país desde a privatização das demais instituições de ensino superior, vem por este meio dar conhecimento da abertura de 200 vagas para a Licenciatura em Jornalismo Manso. As candidaturas deverão ser enviadas apenas por alunos de sobrenome Carneiro, que residam na cidade ou que provenham de outras regiões do país, contando que tenham capacidade financeira para suportar a renda de mil euros por quarto, sendo que esta é a avença mais reduzida que atualmente vigora na capital. Alunos cujo IRS familiar não comprove a sua capacidade financeira para suportar a sua estadia não serão considerados para as vagas.

 

O programa deste curso tem uma componente teórica e uma componente prática, com o objetivo de promover a higienização mental e fornecer capacidades efetivas, em campo, sem recurso a instrumentos de apoio nocivos, como auriculares. Lecionadas por comandantes das mui nobres forças armadas portuguesas e fundamentais figuras do clérigo, as aulas iniciar-se-ão com um momento de oração, no qual se promoverá o conceito de família tradicional, garantindo que os alunos não estão sujeitos à pressão para enviesar a sua moral para atividades divergentes e moralmente incorretas.

 

Além das aulas de frequência obrigatória como “A História do Jornalismo Manso”, “Fontes Oficiais e Pesquisa Breve” ou “Media ao Serviço da Economia Política”, que visam a manutenção do status quo e da ordem natural da vida nacional na construção de textos e criação de conteúdos audiovisuais, haverá também uma seleção de unidades curriculares opcionais, de entre as quais o estudante deverá escolher 2, e que são: “Escrita para Imprensa Mansa”, “Técnicas Passivas de Jornalismo”, “Psicologia da Apatia Social Induzida”, “Comunicação de Ciência Irrefutável”, “Técnicas para Silenciar Debates” e “Media e Serviço ao Governo”.

 

Ao longo do ano serão ainda promovidos vários workshops, lecionados por figuras incontornáveis do Estado, que darão a conhecer as principais razões pelas quais um jornalismo pacato e baseado apenas nas fontes oficiais de informação é importante, destacando ainda a importância de não buscar o contraditório para qualquer notícia relacionada com a ação governamental.

 

É objetivo que, através de um regime de Bolonha, agora atualizado para apenas 2 anos de estudos, os alunos consigam atingir um nível de excelência no jornalismo manso, que permita aos mui nobres regentes desta nação democrática atuar de forma a potenciar a eficiência administrativa do Estado, para benefício das camadas sociais com maior poder aquisitivo.

 

Para os alunos que cumpram os requisitos, haverá a possibilidade de estágio numa das cadeias de televisão e rádio privadas, com as quais o Estado mantém estreita parceria.

 

P.S: Devem ser pagas à cabeça 3 mensalidades de propina e duas de caução, apresentando ainda um fiador no momento da inscrição.

 

Enviem as vossas candidaturas para: nãoserevoltemnão@depoisqueixem-se.pt


Marina Ferraz




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terça-feira, 8 de outubro de 2024

A mistura

 

Imagem gerada por I.A.

Quando eu era pequena, a minha mãe preparava-me uma taça de Cerelac ou Nestum de Chocolate para o pequeno-almoço. (Não, este texto não é patrocinado pela Nestlé.) Havia semanas que recebia um, semanas em que recebia outro... e dias raros nos quais tinha, de presente, esperando por mim na cozinha, uma taça de mistura. Nesses dias, a taça tinha um aspeto de Stracciatella e, para melhorar a sensação que me trazia, o Cerelac formava ainda, como acontecia nos dias em que vinha a solo, pequenos grumos deliciosos por entre a cremosidade do resto da mistura.

 

Isto fazia-me feliz. Os grumos eram a parte do Cerelac que deixava para o fim, deliciando-me com a textura e o sabor dos novelinhos granulados. O dia da mistura era diferente e especial.

 

Nos meus olhos de criança, a minha mãe tinha o cuidado de preparar a papa como eu gostava e a atenção de me premiar, de tempos a tempos, com uma delícia nova, de sabor lácteo ponteado a chocolate. E eu, que a amava por mil outras razões, amava-a também por isso. Porque era a cuidadora carinhosa que me deixava, a cada manhã, aquele presente sobre a mesa, para que eu começasse o dia a sorrir.

 

Demorei muito tempo a saber que a mistura era o aproveitamento do resto do pacote, que não chegava para uma refeição, com o novo, para que se poupasse. Demorei muito a saber que os grumos eram a corrida sem tempo de uma mulher que tinha mais dois filhos para cuidar e que tinha de deixar todos na escola e cuidar das tarefas.

 

Hoje, o meu pequeno-almoço é um café afogado em (demasiado) açúcar com canela em pó. Mas ainda faço as papas às vezes, para o lanche ou um almoço ocasional. Como o meu Cerelac com grumos e gosto particularmente quando tenho um pacote no fim e outro a começar, para fazer a mistura. Estranho, ainda assim, que não tenham o mesmo sabor de que me recordo nas manhãs da infância. E, de todas as vezes, percebo que a memória doce não é a do pequeno-almoço, mas a da minha mãe, que mo servia, fazendo-me acreditar, sem dizer nada, que tudo aquilo era por e para mim.

 

A minha mãe nunca me disse que deixava os grumos por minha causa. Também nunca me disse que fazia a mistura porque eu gostava. Eu assumi isso. Porque tudo o que ela fazia era por mim, e eu não achei que as caraterísticas do meu pequeno-almoço tivessem qualquer diferença. Espantei-me, por isso, quando ela me disse que só fazia a mistura para aproveitar e que deixava os grumos porque não tinha tempo.

 

É uma coisa engraçada. Eu não me lembro de ela não ter tempo. Eu não me lembro de ela cortar em algo para poupar. O que eu me lembro é que ela me fazia o pequeno-almoço. E no simples gesto de o fazer, me fazia sentir a menina mais especial do mundo.

 

Quando me deixava na escola, dizendo adeus através do vidro do carro, eu queria a hora em que me viesse buscar... e às vezes, porque ela estava cansada, jantávamos piza. E sim... eu também achava que era só por eu gostar e não porque o dia a desgastara até ao limite!

 

O mundo cabia no amor. E nem que o mundo real estivesse todo a explodir lá fora, ela transformava essa realidade para criar uma bolha só nossa, protegendo a minha inocência a todo o custo.

 

Tudo isto para dizer o seguinte... Atrás dos gestos de amor, houve empenho e esforço, corrida e cansaço. Houve o mundo a desabar. Houve desespero e descontentamento e dificuldade. Tentarei não me esquecer disto. Mesmo hoje, quando o mundo real está todo a explodir e eu estou cansada. Porque é exatamente assim que quero dar-me aos outros. Porque é exatamente assim que quero viver a vida. Com um pouco de amor em cada gesto, como se os gestos fossem perfeitos... e não se fizessem acompanhar de tudo o que vai menos bem em mim...

 

Possa esta bolha servir para proteger a inocência das crianças.

 

Possa este texto abrir os olhos dos adultos.

 

Possa o futuro ser como o dia da mistura. Feliz-feliz.


Marina Ferraz




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terça-feira, 1 de outubro de 2024

Português suave

 


O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Normalmente tinha a navalha no bolso, o sorriso no rosto e um cigarro na mão, quer o fumasse ou o usasse para ver o mundo através do fumo, senhor desse ponteiro aceso. Era um português suave a fumar Português Suave.

 

O cigarro do meu avô não era só um vício de nicotina. Era um gesto vicioso mais amplo. Uma rotina alicerçada no prazer. Um espaço de partilha. Fazia-se acompanhar da frase, que repetia à minha mãe, feito bênção, quando ela começava a levantar a mesa do almoço. Deixa lá isso e senta-te aí, fuma comigo.

 

Ela sentava-se e fumava com ele. Nessas alturas, ao lado do cinzeiro, o líquido âmbar, sorvido de forma lenta e eficaz, fazia do copo largo o amante improvável das beatas. E eu brincava. E eu corria. E eu olhava, imitando os gestos com os meus cigarros de chocolate, que na altura não eram proibidos nem anti didáticos, e que acabaram por nem me transformar numa fumadora real, nem me trazer diabetes...

 

O meu avô tinha o sorriso doce. Ia dormir a sesta. Acordava com energia suficiente para que víssemos filmes de domingo à tarde e jogássemos dominó... tudo ao mesmo tempo. Tinha livros policiais sempre pousados na mesa. E também esses livros eram amantes inveterados do cinzeiro, onde ia apagando sucessivos cigarros, que sorvia com paixão, com a trama na mente.

 

Era um homem do campo, com a quarta classe. Um homem que trazia os traços boémios da juventude, vincados em cada ruga de expressão. A Liberdade, da qual talvez desdenhasse um pouco, era a mesma evocava em gestos. Nunca se negou nada. Fumou cada cigarro com ânsia e sorveu com igual paixão alimentos, bebidas, amores e desejos.

 

O meu avô foi imortal até tocar o telefone. Mas uma noite, o telefone tocou. O toque do telefone é horrível. Feio. Ecoa pela noite como uma promessa estridente de silêncio.

 

Hoje, a minha mãe não fuma e ninguém a impede de arrumar a mesa depois do almoço.

 

O quiosque onde o meu avô ia fechou algum tempo depois de ele morrer... e eu acho que foi por isso. Que o negócio do tabaco só sobrevive quando se fuma. Vive da morte dos outros, mas só até os matar.

 

Já não se vendem cigarros de chocolate. E eu já não sei se consigo jogar dominó e ver televisão ao mesmo tempo... porque raramente jogo dominó e não tenho televisão.

 

Sei que inalei muito fumo e muito amor junto desse português suave, que não era tabaco, mas gente...

 

E, porque não quero que o toque do telefone tenha sido o carrasco da imortalidade do meu avô, aqui estou. A falar sobre ele, outra vez, na data da sua morte. Para que a memória não seja como aquelas beatas no cigarro, que o copo de whiskey e os romances da Agatha Christie namoravam.

 

 

O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Eu carrego sempre comigo a memória suave, num maço de histórias para contar. E um pouco do mau feitio. E um sorriso doce, às vezes. Não há herança mais bonita.

Marina Ferraz




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