Quando eu era pequena, a minha mãe preparava-me uma taça de Cerelac ou Nestum de Chocolate para o pequeno-almoço. (Não, este texto não é patrocinado pela Nestlé.) Havia semanas que recebia um, semanas em que recebia outro... e dias raros nos quais tinha, de presente, esperando por mim na cozinha, uma taça de mistura. Nesses dias, a taça tinha um aspeto de Stracciatella e, para melhorar a sensação que me trazia, o Cerelac formava ainda, como acontecia nos dias em que vinha a solo, pequenos grumos deliciosos por entre a cremosidade do resto da mistura.
Isto fazia-me feliz. Os grumos eram a parte do Cerelac que deixava para o fim, deliciando-me com a textura e o sabor dos novelinhos granulados. O dia da mistura era diferente e especial.
Nos meus olhos de criança, a minha mãe tinha o cuidado de preparar a papa como eu gostava e a atenção de me premiar, de tempos a tempos, com uma delícia nova, de sabor lácteo ponteado a chocolate. E eu, que a amava por mil outras razões, amava-a também por isso. Porque era a cuidadora carinhosa que me deixava, a cada manhã, aquele presente sobre a mesa, para que eu começasse o dia a sorrir.
Demorei muito tempo a saber que a mistura era o aproveitamento do resto do pacote, que não chegava para uma refeição, com o novo, para que se poupasse. Demorei muito a saber que os grumos eram a corrida sem tempo de uma mulher que tinha mais dois filhos para cuidar e que tinha de deixar todos na escola e cuidar das tarefas.
Hoje, o meu pequeno-almoço é um café afogado em (demasiado) açúcar com canela em pó. Mas ainda faço as papas às vezes, para o lanche ou um almoço ocasional. Como o meu Cerelac com grumos e gosto particularmente quando tenho um pacote no fim e outro a começar, para fazer a mistura. Estranho, ainda assim, que não tenham o mesmo sabor de que me recordo nas manhãs da infância. E, de todas as vezes, percebo que a memória doce não é a do pequeno-almoço, mas a da minha mãe, que mo servia, fazendo-me acreditar, sem dizer nada, que tudo aquilo era por e para mim.
A minha mãe nunca me disse que deixava os grumos por minha causa. Também nunca me disse que fazia a mistura porque eu gostava. Eu assumi isso. Porque tudo o que ela fazia era por mim, e eu não achei que as caraterísticas do meu pequeno-almoço tivessem qualquer diferença. Espantei-me, por isso, quando ela me disse que só fazia a mistura para aproveitar e que deixava os grumos porque não tinha tempo.
É uma coisa engraçada. Eu não me lembro de ela não ter tempo. Eu não me lembro de ela cortar em algo para poupar. O que eu me lembro é que ela me fazia o pequeno-almoço. E no simples gesto de o fazer, me fazia sentir a menina mais especial do mundo.
Quando me deixava na escola, dizendo adeus através do vidro do carro, eu queria a hora em que me viesse buscar... e às vezes, porque ela estava cansada, jantávamos piza. E sim... eu também achava que era só por eu gostar e não porque o dia a desgastara até ao limite!
O mundo cabia no amor. E nem que o mundo real estivesse todo a explodir lá fora, ela transformava essa realidade para criar uma bolha só nossa, protegendo a minha inocência a todo o custo.
Tudo isto para dizer o seguinte... Atrás dos gestos de amor, houve empenho e esforço, corrida e cansaço. Houve o mundo a desabar. Houve desespero e descontentamento e dificuldade. Tentarei não me esquecer disto. Mesmo hoje, quando o mundo real está todo a explodir e eu estou cansada. Porque é exatamente assim que quero dar-me aos outros. Porque é exatamente assim que quero viver a vida. Com um pouco de amor em cada gesto, como se os gestos fossem perfeitos... e não se fizessem acompanhar de tudo o que vai menos bem em mim...
Possa esta bolha servir para proteger a inocência das crianças.
Possa este texto abrir os olhos dos adultos.
Possa o futuro ser como o dia da mistura. Feliz-feliz.
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Lindo texto. Reflete absoluta verdade.
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