Aviso: O texto que se segue contém linguagem forte que pode ser considerada imprópria e/ou obscena.
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Estendo a mão à senhora do manto negro. Sentada no chão,
encostada à parede suja de uma casa qualquer. Ela ignora-a. Deixo-a cair junto
ao corpo. O céu negro. A tomar tons baunilha. A tomar tons rosados. Aos poucos.
Ajudem-me. Ninguém. Só a senhora do manto negro. E dor. É noite que deixa de o
ser e dia que ainda o não é. Sinto o coração bater no peito. Querer sair do
peito. A dor. Encosto-me à parede. A senhora do manto negro permanece. Ao meu
lado. Dentro de mim? Não vejo bem, parece tudo desfocado. Já não sei a
diferença.
Começou como começa sempre, suponho. Tinha quinze anos. E
começou da forma mais simples. Uma passa na ganza do Rui, o amigo fixe. Os meus
pais eram uma merda com os seus horários e as suas regras. Um monte de merda
ambulante, nos seus fatinhos engomados e com os telefones agrafados à orelha.
Uns filhos da puta. Não se importavam em aparecer quando era importante mas
davam-me piços de duas horas se não tinha 18 a matemática. Desses filhos da
puta, estão a ver? Aqueles que acham que o mundo gira ao redor do cu deles e
que a merda que fazem cheira a rosas. A passa na ganza do Rui foi o melhor
momento que tinha tido em anos. A passa na minha própria ganza soube melhor.
Para dar uma pequena ideia: é como aquele momento antes de acordar, em que se
sonha de forma quase consciente. Aquela sensação de conforto, felicidade,
alegria pura. Apetece brincar e rir. Pode não ser uma sensação real. Mas
parece. Faz estremecer os recantos inquietos da alma.
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Ainda negro. Mas já não. Amarelo? Acha que é amarelo? A
senhora não responde. Aguarda.
Não consigo lembrar-me do Rui. Mas a imagem vem à cabeça. É
a imagem ossuda e fantasmagórica da morte a estender-me o cigarro acabado de
enrolar. "Esta cena é fixe e não vicia.". Eu não sei se acreditei.
Aos quinze anos fingimos que acreditamos no mundo como queremos que ele seja. O
fantasma não queria ferir-me. Era mais um iludido de quinze anos. Mas, sem lhe
lembrar outro rosto, firmo para mim que foi a morte que me ofereceu aquela
primeira ganza, porta de entrada para tantas outras.
O lado porreiro de ter pais de merda era que não davam muito
pelas minhas fugas. Aos dezasseis já era presença frequente nos bares da
cidade. Ofereciam-me bebidas e shots. Quando não eram os empregados do bar,
eram os rapazes ou as amigas. Não precisava de muito dinheiro para ter noites
em grande. Só o suficiente para bancar a ocasional ganza que, ao fim de pouco
tempo, deixou de ser ocasional. Não era que viciasse. Era só que os efeitos pareciam
cada vez menos satisfatórios. A dada altura, não eram suficientes para me
fazerem feliz. Comecei a fumar mais. E mais. Mas foi assim que, aos dezasseis
anos, senti que não era suficiente.
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Negro a tender para baunilha. Definitivamente, baunilha. É
baunilha aquela linha no céu. Apetece trincá-lo. Fincar nele os dentes. Fito a
figura negra que aguarda, imóvel, ao meu lado. Será que está lá? Rio. Mas o
riso dura o tempo de meia respiração. O coração bate frenético no peito. Não
consigo respirar. Não consigo. Não consigo respirar.
"Isto não vicia e vai ser uma trip, miúda". Era
uma rave. Uma festa. O pessoal estava ao rubro e o rapaz - não propriamente
namorado mas amigo com extras - era uma pessoa que tinha em conta. Hesitei dois
segundos. Devia, talvez, ter hesitado quatro ou uma hora. Mas aceitei. Era só ecstasy.
Não viciava...
Deu-me a noite da minha vida. Senti-me feliz, viva. Era
quase eufórica a minha vontade de dançar, cantar, saltar. Cores e movimentos e
sons. Tudo amplificado e distorcido e elevado ao máximo. No meio do
entorpecimento da minha vida, a pastilha que ele me deu foi como se tivessem,
subitamente, ligado a minha felicidade no volume máximo.
No meio da confusão, puxei-o para mim e beijei-o, enquanto
dançava com ele. Não sabia como havia de retribuir as sensações que recebia.
Não sabia como agradecer. Acabei por agradecer como todos os homens querem que
se agradeça. Acordei na cama dele. O efeito da pastilha tinha passado. À luz do
dia, as coisas pareciam diferentes. Não me lembro do rosto dele mas vêm-me à
cabeça a imagem de uma caveira negra, petulante. Foi a morte que me apresentou
ao ecstasy.
Comecei a dormir ocasionalmente com ele, à troca de mais
comprimidos. Mas, eventualmente, ele cansou-se e tive de começar a pagar.
No início, custou-me as mesadas. Depois, o pouco que tinha
guardado. Mas era um preço justo. O preço a pagar para me sentir viva. Para me
sentir feliz.
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Será rosa? A senhora de manto negro não parece interessada
em responder-me. Respiro sofregamente em busca de um pouco de ar. Não há.
A cena mais surreal das pastilhas é que nunca deixam de
animar. Mas o efeito passa e, quando passa, parece que o mundo vai ficando
sucessivamente mais merdoso. Uma sensação de desalento, de medo, de angústia. A
depressão de ser tudo um monte de esterco quando o corpo não tem acesso às
pílulas da felicidade. Para mim, naqueles tempos, a felicidade era cara mas
tomava-se com facilidade.
As minhas notas tinham ido pelo ralo. Os meus progenitores
ameaçavam-me constantemente com cenas que não podiam importar-me menos.
Gritavam e eu fingia que ouvia. A escola, para cá. O futuro, para lá. E eu ia
pensando no futuro. Na futura festa. Na futura pastilha. Na futura sensação de
libertação quando aqueles idiotas calassem a puta da boca.
Decidi dar uso à bela expressão "matar dois coelhos com
uma cajadada só". Precisava de dinheiro e queria fazer aqueles dois
sofrer. Ao fundo da rua da escola havia uma lojinha de compra e venda de
artigos em segunda mão. Vendi o que encontrei e achei que valesse a pena vender.
Comecei com coisas cuja falta sabia que ninguém ia sentir. Mas depois as
escolhas escassearam. Comecei a levar coisas mais notórias, desejando que não
me apanhassem tão depressa.
Consegui um bom dinheiro. Com esse dinheiro, pensei, iria
comprar mais pastilhas. Mas não comprei. O vendedor desdenhou o próprio
produto. "Isso é para meninos! Isto é que é merda da boa!". A merda
da boa era cocaína. Ainda não tinha dezoito anos quando experimentei pela
primeira vez. Hoje, não me lembro do rosto do vendedor. Na minha memória,
entorpecida e desgastada, parece-se com Anubis. Lembro-me dele assim: com uma
cabeça de chacal sobre os ombros. "Isto é que é merda da boa!". Seria
ele mesmo assim? Não sei dizer. Era o Deus da Morte que me vendia cocaína.
A sensação de euforia preencheu-me completamente na primeira
vez que cheirei. Era como se o mundo fosse meu, como se nada me pudesse parar.
Queria tudo e sentia que podia ter tudo. E sim, eu sabia que aquilo podia
viciar. Como não viciaria? Era a melhor sensação do mundo.
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O céu e os seus tons baunilha. A dor. Tanta. Tento
debruçar-me para vomitar mas não tenho tempo. Vomito sobre mim própria. A
senhora do manto aguarda.
A melhor sensação do mundo era cara. Vendi as minhas coisas
para comprar cocaína. Depois comecei a vender cocaína para comprar mais com o
lucro. As ruas escuras onde se fazia negócio tornaram-se casuais para mim.
Foi com dezoito que os meus pais se aperceberam que andava a
surripiar objetos da casa. Suponho que a minha mãe gostasse de alguma das peças
de ouro que nunca usava e tivesse partido daí a demanda pelos palitos que tinha
vendido. Eles gritaram. Eu caguei para eles. E eles tentaram ensinar-me,
indicando-me a porta de saída.
Saí. Saí mostrando o dedo do meio, com a roupa que tinha
vestida e uma dose no bolso. Nunca mais voltei para casa.
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A luminosidade aumenta. Doem-me os olhos. A senhora de negro
olha para mim como se me achasse estranha. Levo a mão ao rosto. Quero
escondê-lo. Dói-me o corpo. O peito. Ajudem-me. Ninguém.
Eu costumava ser uma miúda com pinta. Tinha os olhos azuis e
o cabelo arruivado, bem tratado e comprido. Tinha 1,70 de altura que me aguçou
a vontade de ir para os mundos da moda e o peso em torno dos 52 quilos, todos
muito bem distribuídos, como se quer. Nunca fiz muito por ser magra.
Simplesmente era. Foi na altura da cocaína que me despedi de mim assim. Como
era. A pinta foi-se. Mas já não me importava. Não havia nada que gostasse em
mim. O mundo parecia-me uma imensa caixa de merda, tipo a dos gatos, onde toda
a gente se estava a cagar.
Naquele tempo, já andava a cheirar há quase um ano. Comecei
a emagrecer mais e mais. A dada altura emagreci dez quilos em poucos meses. Na
altura, o meu namorado, que pouco ou nada sabia de mim mas insistia em declarar
amor eternos antes da queca, assustou-se com a perda de peso. "Podia haver
mais de ti para amar", disse-me. E eu lembro-me de me rir e de o beijar,
só mesmo para não lhe responder. Para não lhe dizer o quanto eu queria menos de
mim para odiar.
Estava a viver com os meus namorados. Trocava de namorado e
casa com facilidade. Trocava de droga como dava. Quem me conhecia dava-me
algumas borlas ou fiava, ocasionalmente. Às vezes aceitavam-me o corpo como
moeda de troca. Cheguei a pôr mãos a algumas carteiras e a vender serviços em
algumas esquinas de hotel. O que tomava, dependia. Dependia do dinheiro que
conseguia e do que havia na altura. Qualquer coisa que me fizesse sentir bem,
servia. Fosse de engolir, snifar ou injectar. Já nem sentia as agulhas entrar
nas veias. Sentia só o prazer antecipado da felicidade líquida.
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A luz. Ameaça a sua presença com tons brancos entre os
prédios da frente. Os prédios balançam. Dançam ao som do nascer do sol. Tudo
desfocado. As imagens vêm e vão.
Nos meus 21, a cena da moda era o LSD. Quando tomava, era
fixe. Como abarcar o mundo todo de uma vez só. Viver num mundo de fantasia. As
cores eram mais fortes, os sons mais concretos, o tempo parecia estender,
encurtar, moldar-se a mim. Quando acabava, queria morrer para não viver mais no
centro da mediocridade do mundo real. Tentei matar-me algumas vezes, durante as
ressacas. Tentei. Mas nunca com competência. Tudo o que consegui foram algumas
cicatrizes no pulso e gritos enfurecidos de condutores prudentes. Sai da
estrada, sua louca. Mas não consegui morrer. E estava farta. Tão cansada de ser
feliz e infeliz e sei lá mais o quê.
Tinha deixado de ser a "alma da festa". Das
centenas de amigos, passei a zero. Fiquei sozinha. Pessoas sozinhas aprendem a
chamar "casa" à rua. Dormia onde calhava. Com quem calhava. Somos
todos tão descartáveis como lixo quando já não há nada que possam tirar de
nós.
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Já espreita, muito levemente. O brilho incomoda. Não consigo
respirar. Não consigo respirar. Sinto que há demónios a olhar para mim. Queima
na pele. Queima nos olhos. Deixem-me em paz! A senhora de negro levanta-se. Vai
deixar-me também... vou morrer sozinha.
A minha última dose foi ontem à tarde. Estava a ressacar.
Doía-me o corpo. Sentia-me tremer. Foi um gesto de caridade darem-me o ácido.
Não tinha dinheiro que chegasse. Dei o que tinha. Fiquei de pagar o resto
depois. O gajo não pareceu confiar muito mas suponho que se tenha deixado levar
pelo momento. Não é fixe estar a curtir a festa e ter uma miúda em desespero, a
tremer por todos os lados, a implorar. "Vê como tomas isso...",
avisou. O amenizar da consciência. Vi como tomei. Tomei de uma vez. Precisava.
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Vivi no escuro. Os meus dias foram todos noite. Agora não. O
sol já brilha por entre os prédios. O céu está claro.
A senhora de negro não parte. Estende-me a mão. É a primeira
vez que, à luz do dia, me estendem a mão. É a primeira vez, em muito tempo, que
me estendem a mão sem ser para receber dinheiro ou passar droga.
Agarro-lha. Vou. Para quem viveu a vida toda no escuro, a
morte são só nove minutos de sol. E deve ser uma droga. Porque me faz feliz.
Marina Ferraz