terça-feira, 3 de junho de 2025

A cozinha da casa-corpo

 

Imagem gerada por I.A.

O meu coração é a cozinha da minha casa-corpo.

 

Apercebo-me disto enquanto faço mais um auto-de-fé à casa, libertando-me de quase tudo o que é mundano. Desapego-me de bibelôs, essa espécie de apêndice. Atiro roupas para dentro de sacos, libertando espaço pulmonar para novas respirações. Desapego-me até de livros. Livros! Para que as sinapses aconteçam de forma mais leve e livre. Deles, percebo, basta-me o conhecimento que ficou.

 

Vou libertando as divisões de quase tudo. Dividindo o que é de quem. Oferecendo as coleções que tanto amei aos meus sobrinhos. Dando a mão ao tempo do desapego, dizendo: não levo nada para o caixão.

 

E a cozinha ali fica. Com todos os seus tachos e todos os seus pratos. Como se eu precisasse de todos. E sei que não. Sei que só tenho duas mãos e uma boca. Detergente da louça e esponja. Até o luxo de uma máquina de lavar. Mas fica difícil arrumar as coisas. Há uma sensação agarrada às coisas, quase tão entranhada como a gordura que fica depois de fritar rissóis... a sensação de que preciso de ter tudo aquilo à mão. De que preciso de ter tudo aquilo ao pé.

 

Não me entendam mal! Quase tudo o que mora nos armários da minha cozinha é desnecessário. São amores antigos. E crónicas de uma vida que já foi. Chávenas rachadas que contam a história bonita de um tempo que já está reciclado. Talheres que foram roubados de restaurantes. Formas de bolo que não podem ser usadas... mas que fizeram aquele bolo, naquele dia... aquele, que ficou partido num canto, justamente porque a forma já estava a precisar de reforma!

 

A casa leva uma razia e a cozinha ali fica, impávida e serena, com o seu ar altivo, a dizer que é melhor do que as outras divisões. O corpo leva uma razia e o coração ali fica, impávido e sereno, com o seu ar altivo, a dizer que é melhor do que os outros órgãos.

 

Sim! O meu coração é a cozinha da minha casa-corpo.

 

Talvez venha a esvaziar a cozinha antes de esvaziar o coração. E talvez, um dia, cansada, decida limpar igualmente esse espaço confinado do meu peito. Mas eu sei... quando o fizer, ainda que desapareçam talheres e pratos e chávenas rachadas, formas de bolo e esperança... ficará nele um nome... entranhado em todas as frestas e recantos, como a gordura persistente depois de se fritar rissóis.


 Marina Ferraz




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