terça-feira, 5 de setembro de 2023

Infinito

 


 

Todos o meus limites tendiam para infinito. Foi assim que sobrevivi à trigonometria. Mal. A passar com a nota que dá-para-o-gasto. Ou sem ela, mas com a simpatia clara da professora que não me queria chumbar no começo do ano e me classificou com cinco ou seis valores acima do que eu merecia.

 

Penso muitas vezes na minha professora de Matemática e nos limites. No modo como os limites, absolutamente incalculáveis na minha (falta de) lógica, acabaram por se transformar em regra. Pensei. Se usar sempre a mesma resposta, algum dia estará certa. Um pensamento semelhante ao de que talvez ganhe o Euromilhões – no qual não jogo –se usar sempre a mesma chave. Se o secundário fosse eterno, talvez algum dia a resposta tivesse sido esse infinito. Se a vida fosse eterna e eu jogasse no Euromilhões, talvez houvesse menos meses com dias de sobra depois de acabar o dinheiro...

 

O facto é que eu perdi a lógica da trigonometria porque a cabeça estava no infinito da minha resolução. A pensar nos livros e na vida e na morte. Na lógica dos livros e da vida e da morte. Num cálculo incalculável que me afastava de números e de conceitos para me levar até ao espaço onde toda a curiosidade tem a magia como resposta evidente.

 

Mergulhando nos espaços entre as letras dos meus poemas, fui descobrindo que as folhas quadriculadas também tinham linhas horizontais, muito semelhantes às dos cadernos pautados, mas que se pareciam muito mais com a cela triste dos canários. Aprisionada atrás da ideia, comecei a escrever poemas nessa gaiola de capa azul e argolas. Achei que talvez a liberdade dos poemas, quando divididos por esse infinito pudesse trazer consigo outras coisas etéreas e eternas.

 

O resultado efetivo da poesia nos meus cadernos de Matemática foi uma sobrevivência a custo com a nota que dá-para-o-gasto (por pura simpatia da professora) e muitas ideias loucas sobre salvar um mundo sem salvação. Descolei essa ideia da sola do sapato à medida que fui aprendendo que os meus limites não eram infinitos. Que os meus limites, na verdade, estavam claramente definidos e que seria bom que os da sociedade também o estivessem. Um sonho de utopias que caiu em seco sempre que dito e começou a formar um tumor quando foi calado.

 

Hoje disseram-me pela primeira vez. Qualquer coisa dividida por infinito é zero. E, na voz de um homem de ciência, lembrei o modo como tentei soltar as amarras quadriculadas do caderno com poemas divididos por um infinito de coisas, desenhando ao lado gráficos inventados que tendiam, também eles, para o infinito, sem que eu conseguisse alcançar respostas práticas e lógicas. Percebi o pequeno nada que é esse meu desejo de dividir as letras pelas almas que povoam o pequeno infinito finito que é o globo-azul onde moro. Senti-me como os cachalotes e golfinhos de plástico que residem nos globos de neve turísticos dos Açores. Agitaram-me. Fizeram com que nevasse em pleno verão. Senti os flocos da perceção na pele, enregelarem a pele, à medida que tudo assentava novamente e eu entendia que não entendera nada.

 

Saber que não sei ajudou-me a saber. Percebi perfeitamente que o meu problema – com a trigonometria e o resto – nunca foi o cálculo dos limites, mas o facto de todo o tempo ser pouco para que os poemas ao lado dos gráficos tivessem alguma função no rumo da liberdade.

 

Por isso, não quero que este texto se divida por toda a gente. Porque ele só tem 4514 carateres com espaços e há aproximadamente 8,04 mil milhões de pessoas no mundo. Hoje, só quero que este texto tenha uma pessoa que o leia e o entenda e o sinta. E que essa pessoa rebente com as jaulas, mesmo que deixando em paz as pobres das folhas quadriculadas onde em tempos escrevi poemas que quase me chumbaram a Matemática.

 

Com tempo – disseram-me ainda – tudo é fluído. Talvez o pensamento também possa sê-lo. Por favor, não partilhem esta ideia com infinitos de gente. Mas, se puderem, partilhem com a vossa mãe, o vosso pai, os vossos filhos. Partilhem com o jardineiro ou o balconista. Com a cabeleireira ou a condutora do Uber. Partilhem com alguém. Dividam com peso e medida. Para que flua no tempo. Sem infinitos, para que o resultado final seja um número concreto. Outro que não zero.

 

Os meus limites são claros. Não sei nada sobre trigonometria. Mas sei que tenho visto a sociedade fazer o que eu fiz: dar sempre a mesma resposta à espera que algum dia esteja certa. São certezas divididas por infinito.

 

Livre de infinitos, trago hoje o sonho utópico de salvar o mundo. A começar por uma pessoa. Só uma. De cada vez.


   Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Anónimo12:09

    Parabéns Marina por este belo texto que, parecendo ligeiro, é muito profundo. Viva a poesia! Beijos

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