Viajar é algo que a maioria das pessoas inclui na sua lista de “favoritos”. Ainda que os preços das
viagens possam ser um impedimento, muitas pessoas optam por reservar uma parte
dos seus salários frequentemente precários
para aproveitarem um pouco do que o mundo tem à sua espera.
É comum que se ouça dizer que viajar é um luxo. Não é. Ou não devia ser. Viajar devia ser parte
integrante da vida de qualquer pessoa. Estudos revelam que as viagens têm um
impacto na construção cognitiva, no bem-estar e até mesmo na saúde. Mas as dinâmicas
do capitalismo continuam a segregar pessoas, afastando-as das necessidades mais
básicas... e ter um teto e comida na mesa ainda soa para quase todos mais importante do que conhecer o mundo.
Acontece que conhecer o mundo é fundamental para que se entenda
que o salário e a cultura são precários. Acontece que conhecer o mundo é
fundamental para que se entenda quão importante é a construção cognitiva e o
bem-estar. Acontece que conhecer o mundo é fundamental para perceber que as
dinâmicas do capitalismo são uma merda.
Independentemente do ponto de partida. E não me refiro ao local, mas à situação. O facto é que viajar se tornou
fenómeno de instagram. Tendência. E
ninguém se espante de ouvir dizer que muitos visitam os locais apenas para ter
a foto ideal no local da moda. Acontece. E o turismo de criação de conteúdos
sabe que é moda e insiste com o mercado temático para que se emancipe e vire
moda também. E, claro, ainda que o turismo de influencer (ou com base no que disse
o influencer) se destaque, a tendência, de facto, não anda só! Turismo
balnear, de lazer, religioso, cultural, gastronómico, de jogo, de negócios, de
saúde e – abençoado seja - ecoturismo são amplamente procurados. Procurados e,
diria eu, ainda mais promovidos, fazendo-se acompanhar de promoções imperdíveis
que facilmente são perdidas ou despojam um português de classe média de pelo
menos um mês de salário...
Quando dou por mim, a vida deu-me o mimo de entrar nessa moda. A
de viajar. Sem sair do país mas atravessando o oceano, senti a voz: Mundo, Marina. Marina, Mundo. Prazer. Olho
em redor. Gentes. Cultura. Histórias. Alguém tem noção de quantas histórias se
perdem nos recantos mais inóspitos deste planeta imenso?
Não vos quero falar de lugares. Os lugares são pedra gasta e a
erodir. Aqui, maioritariamente (ou totalmente) fruto de erupções, do tempo em
que os eventos explosivos não eram sobre as celebridades nas capas de revistas
cor-de-rosa. Lavas marítimas e subaéreas empilham-se em milhões de anos de uma
história em forma de cones e vales e disjunções prismáticas. E é por entre a
lava solidificada que lavo a alma. Mas as ruas têm pescadores de pele gasta do
sol e do sal e as senhoras de sorriso simpático ainda oferecem o pão e fazem biscoitos de rapadura. Pintam-se os
muros das casas e os entornos das janelas. Passeiam-se vacas de carne pelas
estradas e encontram-se cavalos à beira das estradas.
O senhor Manuel, acreditem ou não, esteve morto e voltou. A mulher
prometeu um Império à Nossa Senhora
dos Milagres. Quando desligaram as máquinas, depois de um AVC e de um ataque
cardíaco que certamente o levaria – ou assim garantia o médico – acordou sem
mazelas. O homem com quem falei e que oferecia um jantar de Sopa de Espírito
Santo e vinho tinto “lá do Continente”
estava bem vivo. E feliz por estar vivo porque não queria ainda deixar os três
filhos biológicos e os três filhos adotados, e queria ter mais uma oportunidade
de viver no mundo onde serviu de família de acolhimento a mais de 230 crianças.
A ilha – desta feita de Santa Maria, nos Açores – rumou a Milagres para comer e
celebrar. O senhor Manuel tinha matado e cozinhado quatro vacas e durante um
fim-de-semana, cumpriu assim a promessa, grato pelo milagre da sua segunda vida.
O senhor Manuel não está num roteiro turístico e não é, talvez, a
foto instagramável que os meus seguidores esperavam ver. Mas é a expressão de
uma tradição tão antiga quanto a ilha, esta que é a anciã dos Açores. E é,
possivelmente, a mais bonita história de viagem.
Sentada numa mesa corrida, lado a lado com gentes que tinham
histórias, eu trouxe o souvenir mais valioso de todos para casa. Um que vem com
uma casquinha fina, que posso exibir em palavras, mas com um centro “tão requim” que é muito difícil
transpô-lo para letras e textos.
São experiências de luxo. Mas viajar não devia ser. Um luxo. São
histórias que nos modelam. Mas viajar não devia ser. Uma moda. Viajar devia ser
para todos e porque todos precisam de se conectar com realidades além da sua
realidade.
O mundo está a globalizar-se e as pessoas estão a
individualizar-se. Algumas pessoas recusam-se a viajar até para fora de si
mesmas, para aceitarem os outros e as suas formas de estar e de viver. A minha
velha máxima “ser e deixar ser” está
em desuso.
Acho que sou velha e, como a Ilha de Santa Maria, meio árida, meio
cheia de florestas. Mas a minha atividade vulcânica não está extinta. O mundo à
minha volta faz-me sentir próxima da explosão.
Viajar devia ser parte da vida de todos. E deviam ser dadas as
condições para que as pessoas possam fazê-lo sem se privarem dos bens
essenciais à vida. E devia ser explicado que a fotografia importa menos do que
a memória, que o Instagram é só uma
montra meio inútil que não retrata a realidade, e que o encontro com a
diferença, com o outro, é o verdadeiro tesouro no final do arco-íris.
Volto para casa com a mala cheia de memórias. Algumas são férricas,
aguçadas e acutilantes. Espero que passem sem problemas pela segurança dos
raios x e detetores de metais na entrada da sala de embarque dos terminais dos
aeroportos... ainda que fosse divertido ver os seguranças a tentarem apalpar a
alma para descobrirem a origem o problema.
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