terça-feira, 26 de setembro de 2023

Os monstros da minha infância

 



Retiro de Minfulness para crianças. Foi exatamente esse o anúncio que travou a minha descida itinerante e desinteressada pelo feed do Facebook, naqueles momentos entre trabalho e trabalho. Se o feed subitamente não descia, o mesmo não se podia fazer do meu queixo, que caiu e – erro capital – cliquei na publicação. O retiro inclui momentos de meditação e espaços de silêncio introspetivo. Para crianças. As imagens mostram crianças de olhos fechados e pernas à chinês, com polegar tocando indicador. Dizem que é uma experiência importante e que promoverá uma vida saudável, equilibrada e feliz. Fecho os detalhes. Também queria fechar a boca. Mas não consigo. E não me parece que vá conseguir tão cedo. É a magia dos algoritmos. Abrimos um link e puff!: todo um leque de métodos para a desinfeção do espaço onde as crianças vivem, cuidados para as levar à rua, estufinhas para o bebé-estufa surgem, acompanhados, como é evidente, de mais e mais atividades de quietude, sossego e silêncio com efeitos incríveis para crianças e promotoras da sua saúde, equilíbrio e felicidade. Queria fechar a boca. Mas não consigo. Concluo que todos os adultos da minha vida, ao longo da minha infância, foram horríveis. Injustos. Inadequados. Monstros.



Apresento-vos a criança que eu fui. No tempo em que “Marina” era apenas um nome que estava lá antes do meu, sem grande motivo... da mesma forma que algumas pessoas tinham o “Senhor” e “Senhora”, eu era só a Raquel. Mas nem era a Raquel, porque não conseguia dizer o meu nome. Era a Kekeia. E a Kekeia viveu, nesses dias em que Marina era forma substantiva (e rara) de tratamento, uma experiência muito diferente da das crianças do agora. Eu vivi uma experiência muito diferente da das crianças do agora.

 

Fiz-me na terra e nos livros. Dos campos e das serras fiz matéria-prima para pintar a roupa acabada de lavar que a minha mãe me vestira. Saltitei em poças e entrei calçada em ribeiros. Às vezes sem querer. A maior parte das vezes a dizer que tinha sido sem querer, pelo sim pelo não. As macieiras do meu avô tinham risos pendurados. A cozinha da minha avó tinha massa até no teto e farinha (com glúten e tudo) espalhada no chão, depois de amassados os biscoitos que, dizia-me ela, saíam melhor à mãe. Cantei a plenos pulmões na rua. Corri para fugir dos meus irmãos e levei uma pedrada mesmo no meio da testa (que explica muitas coisas). Deixei escaravelhos passear pelos meus braços e adotei um caracol azul, que desapareceu num Toyota Avensis Cinzento... se alguém encontrar, devolva! Fui enterrada na areia só com a cabeça de fora e gritei até me libertarem desse confinamento feito de erosão e sonho. Levei praias quase integrais no meio dos cabelos revoltos para casa. Quase me afoguei com a minha irmã no agraciamento das ondas do final do Verão. Andei com pintainhos e patinhos ao colo. Fui dar pão às cabrinhas que pastavam ao pé de casa dos meus avós. Tentei prender um pardal, que morreu. Tentei soltar um canário para que não morresse e ouvi explicações sobre as formas de liberdade da voz velha e sábia do meu avô. Caí e rasguei o lábio a dançar uma música dos Excesso. Todos os adultos da minha vida, da minha infância, foram horríveis.

 

Crescendo. Dessa maneira hedionda. Foi assim que me tornei a Marina, sendo Marina já nome e não forma substantiva de tratamento. Continuei a ser Raquel para eles. Ocasionalmente, até Kekeia. Têm muito amor na forma como dizem todos os meus nomes. Provavelmente não sabem que foram horríveis e me destinaram um futuro doentio, desequilibrado e infeliz por não me terem obrigado a estar quieta e calada no meu canto a pensar sobre a vida, em modo de retiro. Provavelmente não sabem que me teria conectado mais com a Natureza a pensar sobre ela numa sala do que a comer terra no quintal. Provavelmente não sabem que teria relações mais equilibradas sem brincar na praia com os meus irmãos e as outras crianças...

 

 

Foi pena que os adultos da minha infância não soubessem nada disto. Faltam-me as soft skills para parar e estar em equilíbrio. Sobra-me, em vez disso, uma agitação permanente sobre o futuro e uma pena terrível dos pequenos seres que não serão enterrados na areia, nem comerão terra, nem adotarão caracóis, nem sujarão a cozinha dos avós com massa de biscoito, nem correrão até terem os joelhos esfolados.

 

 

Espero que venham a ser felizes e saudáveis e equilibradas. 

E que os pais saibam o que estão a fazer...

 


Penso que não serei mãe. Mas, se fosse, Deuses, eu ia querer ser um monstro. Injusta. Inadequada. Comos os adultos horríveis da minha infância. Com crianças que pintam de terra a roupa acabada de vestir e cantam alto na rua. Crianças desequilibradas. Daquelas que não parariam quietas em retiros de Mindfulness onde se promove a felicidade futura. Por estarem demasiado ocupadas. A ser felizes. Agora.


Marina Ferraz




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