Em criança, eu sabia cantar. Nunca ninguém me ensinou. Mas sabia. Sabia de tal forma que, abrindo as cordas vocais ao mundo, cantava alto nas ruas. Principalmente à noite. A canção da lua. A minha avó lançava sorrisos meio envergonhados a quem passava. Deitava-me um elogio aqui e ali. Destacava esta história sempre que surgia oportunidade. E sorria com carinho.
Na escola, a escolha dos papéis de teatro insistia em dar-me o protagonismo vocal. Fui uma Nossa Senhora a cantar salminhos. Fui o Anjo que convidava os pastores a entrar naquele local sagrado para adorar o menino numas palhinhas deitado. A prestação no palco escolar valeu o convite para a missa do galo, onde repeti a performance, com a canção soando alto e bom som. Fui também a Aurora, da Bela Adormecida, muito melhor na arte de cantar as canções do que de seguir o guião... (lembro-me de ter o príncipe, ali interpretado pelo Zé Gonçalo, a dar-me um beijo na bochecha... e do meu ar descontente, respondendo um “pode ser” meio enojado à pergunta de se queria casar com ele... casar... vejam lá bem!)
Cantei. Cantei porque sabia cantar. Nunca ninguém me tinha ensinado, mas também nunca ninguém me tinha dito que era preciso aprender. E a minha voz era solta e livre. Como o era. Solta. Livre. Eu sabia cantar.
E um dia disseram-me que eu não sabia. Um dia. O poder eterno da palavra. Informaram-me de que eu não sabia. Cantar. E eu retraí-me. Na vida e no canto. No canto e no palco. Até ficar no canto do palco e me recusar a subir durante muito tempo. Subiria ao palco, depois. Sem voz. Não cantei mais. Era apenas dona da frase. Da desculpa. Eu. Não. Sei. Cantar.
Olho para a minha voz tolhida e envergonhada. Presa como catarro antigo na garganta. Com uma agorafobia estranha. Mas finalmente decidi tossi-la. Não sem primeiro comprar uma ou duas piadas que me perdoam a falta de fé. Que me protegem do outro. Eu gosto de cantar, só dói aos outros. Uma espécie de escudo, para me perdoar o desafinado das notas. Não sou cantora, de qualquer maneira. Mais uma rede de segurança. Mas canto. Há quem cante a desafio. Eu canto a desafino. E, no fim, há sempre alguém que diz que gostou de ouvir. E eu finjo que acredito, arrastando nos pés ainda os ferros das palavras. Eu. Não. Sei. Cantar.
Tento voltar à menina que fui. Agora que tenho os palcos. Quero a minha voz de volta. Mesmo que doa aos outros. Quero a minha voz de volta. Mesmo que nunca mais aceite vestir-me de Nossa Senhora ou de Anjo. Quero a minha voz de volta. Quero desbloquear esse cerco em redor das cordas vocais. Quero defender-me da agressão das palavras e ter a respiração baixa na barriga novamente para me sustentar os tons. Quero o canto. Porque é do canto que se vai para o centro e eu quero ir.
Em criança, eu sabia cantar. Nunca ninguém me ensinou. Mas sabia. Volto, agora, à raiz, para que me ensinem. Não sei se quero que me ensinem a cantar ou se quero que me ajudem a voltar ao tempo em que achava que sabia.
Há muitas maneiras de nos calarem a voz. Há muitas maneiras de nos silenciarem.
Não quero mais o silêncio. Tenho uma canção pendente, com um poema lindo, à espera da peça que vem a seguir. Vou sair do canto para o canto.
Enquanto é tempo de cantar.
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Compreendo-te Marina querida. Toda a gente gosta de cantar e eu tb, mas (há sempre um mas), já te ouvi cantar e gostei, mas sei e tu sabes que não és cantora como eu não sou e a maioria das pessoas não é. Mesmo a maioria dos e das que se dizem, não o são de facto. Não há muitas pessoas que tenham uma real capacidade para cantar. Estudar canto para quem queira ir mais longe, sim, é essencial, como é ter-se uma boa voz, capacidade de elevação, coordenação melódica, etc. Porém, tu não precisas, porque o teu destino não passa por aí. Acho que deves cultivar sim aquilo que sabes fazer melhor, ou seja, as artes da palavra escrita ou dita ou representada ou dançada. Creio que é mais por aí. Mas tu é que sabes o destino que queres construir para ti.
ResponderEliminarPois, Marina querida, eu sei que gostas de cantar e eu tb e muita gente, claro, mas sucede que poucas pessoas têm real possibilidade para o fazer com propriedade. Sim, é preciso ter capacidade vocal, aprender a elevar e diferenciar as tonalidades, a coordenar bem , whatever. Seja como for, creio que esse não será o teu mundo. Pois o teu é de facto a palavra, a escrita quer seja falada ou dita ou dançada ou representada ou o que seja. É nisso que és maravilhosa. Todos o reconhecem e te admiram por isso. Mas tudo bem, é um desejo legítimo como qq outro.
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