Sentada à mesa de um qualquer restaurante, rodeada de homens, de repente ouve-se um “foda-se”. A asneira faz-se seguir de um movimento brusco, tapando a boca. De um meio sorriso. De um “desculpa, Marina”. Sou a única mulher na mesa. Mas não sou o tipo de mulher que não diz palavrões. Preparo-me para dizer que não faz mal. Não tenho tempo. O meu ex-namorado diz, num riso casual: “A Marina?! A Marina é um gajo!”. E eu rio-me. Não sou. Mas, se considerarmos o estereótipo, a forma como me sinto confortável naquele ambiente, a minha escolha de linguagem (e, por vezes, de vestuário) e muitas outras posturas do quotidiano, é fácil entender – ainda que alguns possam criticar – aquela expressão. Sou uma mulher que se sente mulher. Que se tornou mulher, para usar as palavras de Beauvoir. Identifico-me com o género que tenho. Pura sorte. Mas não sou uma mulher dentro-do-padrão. Nem quero ser. Tenho pouca paciência para a maioria dos esforços que se associam ao ser-se mulher. Gosto de sê-lo à minha maneira. Às três pancadas. De me arranjar em 15 minutos de manhã. De andar sempre de sapatilhas. De comer como um camionista, que me perdoem os camionistas a comparação. De pegar em escaravelhos e gafanhotos em vez de fugir deles. De usar impropérios aleatórios no discurso. É a vida. De qualquer forma, estou só a viver, sem pretensões de vir a ser a próxima Miss Portugal.
Nunca fui – continuo a não ser – fã de concursos de misses. Recuso aqui, propositadamente, o termo “concurso de beleza”. Os concursos de Miss – sejam locais, Portugal, Mundo ou Universo – não são só concursos de beleza. Critérios apertados garantem que além dos preceitos físicos, da elegância e da apresentação visível, as candidatas são símbolo de glamour e sofisticação, e indivíduos-modelo, que apoiam causas relevantes, têm um papel na área da filantropia, conhecimentos ao nível da história e cultura nacionais, objetivos estruturados e uma ficha criminal limpa. Não é fácil entrar neste leque de mulheres e muito menos ser, de entre elas, a melhor.
Olhando os critérios do concurso eu sei que jamais seria Miss. Mas a minha homónima, a Marina – aqui Machete e não Ferraz – foi-o. Usualmente, este seria um não assunto. Mas é um não assunto que se tornou assunto. Porque não faltam, pela Internet, manifestações de ódio puro, opiniões deslocadas e afirmações de amplitude mental limitada. A Marina – que nos representará no concurso de Miss Universo em El Salvador – é, pois, uma mulher que – e vou citar novamente a minha querida Simone - “não nasceu mulher” mas, em vez disso, “se tornou mulher”. Literalmente. Uma mulher trans.
Rapidamente avaliando a questão e sem grandes conhecimentos sobre o que levou o júri a escolhê-la, não me sinto chocada com a vitória. Vejo uma mulher bonita e elegante, que pode eventualmente cumprir todos os critérios do concurso e que em nada fica atrás das suas colegas. Só lancei um olhar muito rápido e talvez superficial, insuficiente, às candidatas. Só o lancei porque o machismo e transfobia de algumas afirmações, tão cruas e cruéis, me incentivou a fazê-lo. E, porque o fiz – talvez por não ser a mais-feminina das mulheres e porque realmente não me interessa muito o concurso... – senti-me ainda mais confusa. Repito. É uma mulher bonita e elegante. Pode bem cumprir todos os critérios do concurso. Não se destaca negativamente de nenhuma das outras candidatas. Nesta análise breve, acredito que ela venceu e é trans, mais do que acredito que tenha vencido porque é trans. Não me sinto chocada com a vitória. O que me choca é que, de repente, tantos homens cisgénero se importem desta maneira com o concurso de Miss Portugal...
As afirmações da Internet dizem sobre a Marina o mesmo que o meu ex-namorado – plenamente informado da minha condição feminina e em tom de brincadeira – dizia de mim: “A Marina?! A Marina é um gajo!”. Acontece que, neste caso, não me parece que seja! E não há tom de brincadeira nos discursos... Há ódio. E injustiça, se considerarmos que não acho nada que esta Marina seja um gajo. Parece-me ser mulher. Uma mulher que se apresenta, sente, vive e relaciona com o mundo nessa condição. Neste momento, penso que muita gente que só diz asneiras, deveria, sim, dizer “desculpa, Marina”.
Eu tropeço nos meus próprios pés, mesmo sem saltos altos. Falo como se tivesse nascido no Norte. Visto a primeira coisa que me vem à mão de manhã. Tenho zero de paciência para Shoppings. Não consigo entender o mundo das revistas cor-de-rosa nem as telenovelas. Sou anti-dramas no contexto de qualquer relacionamento. Tenho sempre o carro cheio de migalhas. Frequentemente a roupa com nódoas. Definitivamente por passar. Não nasci para a correção. Muitos dos meus gostos coadunam-se mais com os alegadamente masculinos do que com os estereotipadamente femininos. A maioria dos meus amigos são homens... Poderia continuar eternamente esta lista...
O facto é: entre esta Marina e a outra Marina, uma nunca poderia ser Miss... e claramente sou eu!
Entretanto, minha gente, não sei
se deram conta. Mas com o novo Orçamento de Estado estamos todos fodidos com os impostos. Ups. Mão levada à boca no momento do
impropério. Desculpa, Marina.
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