terça-feira, 31 de outubro de 2023

Visitas

 


Hoje não posso. Tenho visitas. Compromissos inadiáveis. E já agendámos novamente um encontro no próximo ano. Um dia, irei eu, sem dia fixo de calendário, bater-lhes à porta. Mas hoje. Especificamente hoje. Abro todas as portas e todas as janelas e todos os recantos de ventilação. Para que entrem. Para que se sentem. Para que bebam do meu vinho. Para que comam da minha comida. Para que me amem. Para que sejam amados. Hoje tenho visitas. Tudo o resto terá de esperar. Até a vela que arde.

 

 

Não é um grupo muito harmónico. Sentá-los todos à minha mesa é pedir para que a discussão se faça. Um é salazarista. Uma é antifascista. Uma tem alergia a gatos. Outra é um gato. Um não gosta de massa com bacalhau. Outra gostaria que eu o tivesse feito. Concordamos todos no bacalhau com ovos à moda da minha bisavó. Mas a Idalina também tem um ou outro bitaite sobre a forma como eu devia alisar os ovos para que ficassem mais bonitos. Não se demora nisso. Mas só porque, de repente, o António diz qualquer coisa sobre a Guarda e é preciso iniciar a eterna discussão sobre qual é mais feia: a Guarda ou a Covilhã.

 

O Ramiro tem um descontentamento preso nos olhos quando me nota no pulso a palavra que ele mesmo disse. A Graciosa também não é fã de tatuagens, mas emociona-se novamente com a certeza de que aquela é a sua caligrafia. Beijo ambos no rosto. Mais do que uma vez. E sirvo tinto. Para ela, aquele vinho é delicioso, mas diz que não pode beber muito, que senão fica meio-meio. Ele diz que, hoje, já não sabem fazer vinhos, mas bebe com agrado, no recordar do sabor das vinhas que criou de berço e que lá permanecem, embebedando as histórias magras de outras eras.

 

Comem todos do mesmo prato. Bebem todos do mesmo copo. Quem mais vier, que se junte. O ar enjoado da Ali e do Ron, enquanto roem as guloseimas, soma-se a uma procura mais ou menos intuitiva da Tiara pelo bacalhau cozido. Entretanto, neste outro plano, a Sam segue-os com o olhar e a desconfiança dos vivos. E também ela recebe o mimo da guloseima rara, apenas porque é dia de festa... que não te quero a visitar-me só uma vez por ano tão cedo. Digo-lhe.

 

É uma festa que dura até de manhã. São visitas que desconhecem a hora. Estendem a estadia até dar. Saem quando lhes apetece. Voltam quando lhes apetece. Vão acalentando o pavio da vela ritual. Há-de estar acesa enquanto aqui andarem. E não levanto a mesa até que saiam. Humana e consciente da hora avançada, eu adormeço. Mas não como nos outros dias. Com as visitas. Ao colo de umas, com outras ao colo.

 

 

Então. Obrigada pelo convite. Sei que vai ser divertido. Agradeço que me queiras lá. Mas hoje... Hoje não posso. Tenho visitas. Não quero nem a música. Nem a agitação. Nem as pessoas de carne e osso. Estou cansada dessa vida dos vivos. Hoje, tenho visitas e muita esperança de que elas fiquem e fiquem e fiquem... mesmo que deixar a mesa posta por dias e dias seguidos me faça comichão na pele. Mesmo que deixar a vela acesa ataque todas as minhas cautelas.

 

Hoje não posso. Tenho visitas. Compromissos inadiáveis. Um dia, quando me juntar a eles nessa visita anual às casas, quero que me recebam também. Reclamarei, como eles. Da comida, do vinho, das conversas políticas (que certamente se frisarão com a minha presença).

 

Então. Nesse tempo vindouro. Aí. Aceitarei o convite de quem ponha o meu lugar à mesa neste dia.

 

Mas até lá. Não. Não contes comigo.

 

Hoje não posso. Tenho visitas.

 

Marina Ferraz




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