A vida olhou-me nos olhos. Bem dentro dos olhos. Perscrutando a alma. Olhou-me. Assim. E soltou um “ups”. Troçando. Largando-me a inocência como pomba branca. Como pomba morta. Deixando apenas no ar as penas. E eu colhi. As penas. Sem saber muito bem carpi-las. Agarrando-as para delas fazer o colchão que me bebe as lágrimas na noite.
Os exércitos invadem cidades como a realidade invade as pessoas. O mundo nunca foi bom. Lembram-me. Mas eu não quero acreditar. Com a vida a invadir-me o corpo crente de outras vidas – aquelas que me dizem que nunca existiram - o negrume tenta levar-me para o lado da Força onde não quero achar que pertenço. E diz-me: já usas as vestes. Visto. Quero ocultar-me do mundo. Camuflar-me nas vielas dessa escuridão podre. Mas não lhe pertenço. Recuso. Recuso que a alma me mime a coloração sombria das vestes.
Vou olhando ao espelho para encontrar máscaras pretas que iludem os turistas que visitam temporariamente os meus espaços. Sei que se diz de mim o que não sou. E pouco me importam as palavras. Palavras – percebi, triste – não são a poesia que brota plena de Primaveras que o mundo não teve. Palavras – afinal – são só vazio quando não têm ação que lhes dê uma estação do ano. Palavras – quando sós – não servem para nada.
Na tentativa vã de sobreviver às guerras dos tiranos, à mágoa dos penitentes e à falsa diplomacia dos privilegiados, quero olhar para mim como se eu fosse indiferente. Olhar a vida, de volta, com o mesmo desapego. Com o mesmo gozo. Com a mesma maldade. Ainda tenho muito presente a voz da minha avó, falando da sua mãe: que lhe faziam mal e sempre era boa. E se ela não está no céu, ninguém está.
O céu é uma utopia. Mas olho-o, procurando ver o voo das palavras com ação que ela dizia e que, se não tornaram o mundo melhor, me inspiraram a querer ser parte dessa bondade que merece o que fica para além do visível. Não anseio por redenções nem partilho a fé nesse deus cru que ela imaginava. Mas quero deixar luz quando despir as roupas negras.
A vida olhou-me nos olhos. Bem dentro dos olhos. Perscrutando a alma. Olhou-me. Assim. E soltou um “ups”. Troçando. Largando-me a inocência como pomba branca. Como pomba morta. Eu ponderei. Eu descobri. O espelho. E era eu a vida. E era eu o indigente vulto negro que matava a inocência, tentando sobreviver.
Então, ajoelhei-me. Primeiro para colher as penas. Sem saber muito bem carpi-las. Agarrando-as para delas fazer o colchão que me bebe as lágrimas na noite. Por entre o choro, apercebi-me. Os exércitos invadem cidades como a realidade invade as pessoas. Então ajoelhei-me. Peguei na pomba morta da minha inocência e fiz-lhe respiração boca-a-bico. Agarrei-lhe os ossos meio partidos. Agarrei-a junto ao peito. Reacordada e moribunda.
Vais morrer disso. É isto que a lógica me diz, na voz dessa vida negra que me olha a partir do espelho. E eu concordo. Vou morrer disto. Soa bastante melhor do que estar viva. Sem isto.
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