terça-feira, 14 de novembro de 2023

Morte aparente


 Para Ercília Ferraz

Nasceu com morte aparente. Poderia ter ficado por aqui, esta história. Não seria história que valesse um texto. Mas seria uma história. Uma que marcaria, certamente, mais tristeza no rosto da minha avó e mais agressividade nos gestos do meu avô. Muito parca de narrativa. Sem palavra ou acontecimento. Sem intriga nem enredo. Sofrimento só. Abençoaram-nos os Deuses – os meus e o deles, em perfeita harmonia – com outra. Uma que vale o texto.

 

 

Há uma mulher. A mulher que há é resiliente e metódica, diligente e lutadora. Companhia das trincheiras da vida. Aquela que – como dizia Hemingway – importa mais do que a própria guerra. Nessa guerra, é guerreira. Não só combatente, mas combativa. Teimosa e senhora do seu nariz. E se lhe chega a mostarda ao nariz... Focada. Sensível. Uma Força da Natureza. Há uma mulher. Uma mulher que antes de o ser foi moça. E que antes de ser moça foi menina. E que foi sempre assim. Fiel ao seu eu. Vivendo até hoje como a bebé que nasceu morta. Cada decisão honrando o seu nascimento. Tudo a seu tempo. Tudo a seu jeito. Até o que sabe, de instinto, que devia ser diferente. Tudo a seu tempo. Tudo a seu jeito. Como a primeira respiração. Retardada.

 

É a dona do canto que ocupa e não precisa de companhia, embora a aceite e valorize. Gosta de ler. Emociona-se com os livros inteligentes e de seres humanos bons. Mas acha que a maioria dos livros e seres humanos partilham o traço de não o ser. Inteligentes ou bons. Isso, meus amigos, já não é traço de carater, mas experiência de vida!  

 

Entusiasta de automóveis e detentora da capacidade de conduzir automaticamente carros com mudanças manuais, ela desliga-se quando o motor liga. Faz isso demasiadas vezes. Gosta de aventuras de estrada aberta. Aventura-se nos becos estreitos das cidades propositadamente. Tem um GPS incorporado na cabeça. Não se perde, mas faz por se perder. Ama a ideia de não saber onde vai dar a estrada a seguir. Talvez – penso – porque a vida lhe tenha dado estradas certas e lineares, um pouco monótonas na passagem pelas silvas e os ninhos de víboras. Sobreviveu a essa estrada e às outras. Muitas outras haverá ainda, esperando a sua alma destemida e o seu espírito ousado.

 

 Nunca bebe. É sempre abstémica. Até chegar a sangria e a jeropiga à mesa. É aguerrida na defesa dos seus valores. Intempestiva em muitas respostas. Mas sabe parar e pensar sobre si mesma nos mesmos termos. Aprendeu a bondade com a mãe. Aprendeu o companheirismo com o pai. Aprendeu sozinha a pedir desculpa quando a aspereza que não aprendeu mas herdou de signo a torna desnecessariamente o equivalente humano de arma nuclear numa conversa.

 

É incrivelmente bonita. Mas não sabe que o é. Elegante. Mas não sabe que o é. Não saber que o é torna-a ainda mais bonita. É uma beleza simples e humilde, que veste roupa casual, por vezes desportiva, sem tintas nem artifícios escusado. Faz a sua própria moda sem seguir a moda do impróprio conformismo. É o tipo de mulher que agarra o estilo eterno de que falava Chanel e que suplanta facilmente a norma chata das montras.

 

Pende-lhe do pescoço um pedaço da sua fé. Fica na sua passagem o aroma distinto de quem tem hierarquia mágica nas veias. Emana dela a energia que transforma a terra e faz crescer as plantas. Agarra o nome da religião que lhe deram e transforma-o na ideologia que a rege. Recusa os livros sagrados, mas não o sagrado dos livros. E resume tudo à bondade. Resume tudo ao amor. E diz que ama quem ama com cada gesto diário.

 

Nasceu com morte aparente. Vive. O seu nome não será, talvez, dado a nenhuma rua – a menos que eu venha a dar nome a uma rua! Mas é como se houvesse cidades inteiras com o nome dela. Tem plaquinhas eternamente gravadas com o nome dela a ornamentar as ruas do peito de muitas pessoas. Do primeiro momento e até hoje, foi essa inscrição que deixou nas vidas de quem com ela se cruzou. Fossem os amigos, a família, conhecidos de percurso, funcionários das lojas que frequenta ou completos estranhos. Não é pessoa que passe sem deixar algo de si.

 

Nasceu com morte aparente. É minha mãe. Não quis falar dela como mãe, embora por três vezes o tenha sido e de todas elas tenha feito trabalho de heroína de novela. É muito fácil lembrar-lhe os traços maternos. Os traços ternos do colo. O cuidado em noites e noites em claro. Não quis falar dela como mãe, ainda que nascer dela tenha sido a maior das minhas bênçãos.

 

Nasceu com morte aparente. Sobreviveu à primeira morte para ter uma vida que importa. Tornou-se mulher-modelo das mulheres. Tornou-se a mulher que fica, por vezes, oculta atrás da máscara que a camufla de mãe. Não quis falar dela como mãe. Quis falar da mulher que nasceu com morte aparente e cuja vida foi – é – grito silencioso. Da mulher que é tão mais do que os filhos que teve!

 

 

Nasceu com morte aparente. Felizmente vive. Se não tivesse nascido, muitas pessoas que caminham pelo mundo não teriam uma plaquinha com o seu nome no peito, marcadas pela sua valiosa vida.

 

Não eu.

Eu simplesmente não caminharia pelo mundo.

Eu simplesmente não teria nascido.

 

E não haveria este texto.

E ninguém saberia que a mulher mais perfeita do mundo nasceu com morte aparente.

 

 Marina Ferraz




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1 comentário:

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