terça-feira, 24 de outubro de 2023

Habitação

ou breve crónica em defesa das decisões tomadas pelo governo português

 

 


 

Eu sei que sou do contra. Ao longo da minha vida já fui considerada paranoica, teórica da conspiração e negacionista. Também já fui considerada má influência e monstro. E também já fui desconsiderada umas quantas vezes. Está tudo bem! Hoje, não direi nada contra. Venho afincadamente defender o trabalho do governo português. Fazer uma festinha no pelo dos carneirinhos lusos, mesmo antes de irem para mais uma tosquia à portuguesa, que lhes dará um Inverno mais produtivo, onde poderão demonstrar a heroica alma e provar a sua resiliência.

 

Sabemos todos – exceto quem, sofrendo de agorafobia também dispensa televisões, rádio, jornais e internet – que estamos a atravessar uma das mais graves crises de habitação desde que as cavernas sem risco de derrocamento já estavam ocupadas. Tão grave que existem muitas pessoas que aceitam uma caverna com risco de derrocamento em Lisboa, desde que a renda seja inferior ao salário. Na porta do parlamento, montam-se tendas e deixam-se indignados pedidos para um travão à situação atual. Na Internet, solicita-se a construção de uma terceira ponte sobre o Tejo, para que os portugueses possam viver sob a mesma.

 

A situação agrava mais e mais por razões diversas. Os travões à inflação no mercado do arrendamento tornam incomportável, para muitos senhorios, o aumento dos pagamentos bancários face ao aumento das taxas variáveis. Subitamente, o alojamento local é mais rentável. Uma espécie de “bora lá explorar os estrangeiros, agora que já roemos a carne nacional até ao osso e já chupámos o tutano”. Mas, com os pagamentos ao banco e o aumento nos preços dos produtos, também os senhorios são esse português de tutano chupado. Vivemos numa espécie de favores-em-cadeia... mas ao contrário... retaliamos no próximo, fazendo tudo aquilo de que nos queixamos de ser vítimas. Uma brincadeira de adultos. Passa a outro e não ao mesmo. E afundamos todos na velha e saramaguiana Jangada de Pedra, tão lúcida e atual.

 

Lisboa é a cidade mais cara do país para arrendar uma casa. E é a terceira capital europeia com rendas mais caras. Isto num país onde o salário mínimo é tão mínimo que não chega para o mínimo essencial à vida, com os preços a atingirem novos máximos todas as semanas. Os meus pais, que viajaram brevemente à Bélgica, contam que um taxista se queixou de que as rendas são incomportáveis porque são cerca de mil euros mensais (num país onde o salário mínimo é de quase 1.600 euros). Não desfazendo as queixas do taxista, mas qualquer lisboeta, com o seu salário mínimo de 740 euros mensais, não franziria a testa a ouvir falar do preço da renda. É ridículo, mas tão comum que não causa espanto.

 

Perante tudo isto, no entanto, hoje estou aqui, afincadamente disposta a defender a ação do nosso governo para solucionar isto. Adotando uma postura de Thomas Edison, o governo português tem vindo a descobrir as mil maneiras como não resolver o problema da habitação. Mas, depois dos travões à inflação do arrendamento, do arrendamento obrigatório de habitações devolutas, e da compra de supostos especialistas para a apresentação de medidas baseadas em exatamente pesquisa nenhuma... fez-se luz. Já a partir do próximo ano, os veículos a gasóleo anteriores a julho de 2007 terão um aumento do IUC de até 1746%. Com esta medida, o governo consegue transformar bens, antes circuláveis, em imóveis, solucionando, por fim, o problema da habitação, que será ao preço do parquímetro. A renda desta forma de car camping será executada pela EMEL e variará consoante a zona, devendo o acampamento no veículo preferir as zonas verde e amarela para maior poupança e as zonas vermelha, castanha e preta para quem quiser continuar a viver acima das suas possibilidades.

 

 

Inovadores e vanguardistas, os nossos líderes conseguem simultaneamente solucionar a crise da habitação, salvaguardar as questões ambientais, promover hábitos saudáveis nos portugueses (cujas deslocações serão agora maioritariamente com recurso às pernas) e resolver o trânsito caótico de Lisboa.

 

Devidamente comprovada a capacidade de raciocínio lógico e a orientação para a resolução de problemas que motiva os nossos governantes, já pouco há a dizer. Vale só a pena destacar que, ao descansarem nos seus imóveis de luxo com chão aquecido e jacuzzi, sobre os seus colchões de penas com lençóis de linho egípcio, estes líderes destemidos receberam ainda uma mensagem divina que os fez decidir manter o regulamento que determina que os carros do governo estarão isentos de IUC.

 

Mas... enfim... também não é grave! Não existem ostentações na frota governamental. Não é como se algum dos carros fosse mais antigo do que 2007.


 Marina Ferraz




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