Não estou equipada para o mundo em que vivo. Lamento. Se tivesse nascido na América já alguém me teria dito, estou certa, que a minha vida é a criadora informal da expressão “bring a knife to a gunfight” (“uma faca para um tiroteio”, portanto). Acontece que eu não gosto muito de guerras e guerrinhas... e não estou nem quero estar armada até aos dentes e preparada para este desgastante-mundo-novo, onde a construção mais sólida se desfaz em pó... em segundos.
Um garfo. Sabem? Aquele utensílio de mesa de criação ocidental, usual mas não obrigatoriamente metálico, com três ou quatro dentes relativamente aguçados, que serve, de entre outros propósitos, o de levar a comida na viagem que separa prato e boca. Um garfo! É isso que eu uso para fazer puré de batata... Batatas cozidas (geralmente com um tempo de cozedura extra, para facilitar processo), uma tábua de cortar vegetais, um prato fundo ou taça... e um garfo. Um processo milenar: põe batata na tábua, miga com o garfo até estar desfeita, raspa da tábua para o prato ou taça. Repete. Processo repetido vezes o número de batatas cozidas, com mais uma moidinha extra no final, para garantir a ausência de pedaços grandes e lá volta tudo para a panela. Manteiga ou margarina vegetal. Leite de vaca (ou vegetal). Manteiga ou margarina vegetal. (Vou cortar na descrição para não assustar quem teme o colesterol, mas ressaltando que o segredo é mesmo a manteiga). E voilá!! Habemus puré! Sem Bimby. Sem Passe Vite elétrico. Sem Passe Vite manual. Com um garfo!
Esta sou eu. Bem-vindos a mim. Gosto de fazer as coisas de maneira tradicional. De amassar a massa da piza com as mãos. De pintar paredes a pincel. De cozinhar com colheres de pau e fogões a gás. Perco a conta ao número de vezes que roguei pragas a fogões elétricos ou de indução, mais a quem os inventou! Da mesma forma, gosto de ler livros que posso cheirar e cujas páginas criam sensações na ponta dos dedos. E de escrever à mão. De sentir o papel liso. De abraçar a caneta com os dedos. Claro que é impossível fazê-lo sempre! Lá me rendo aos teclados dos computadores, que são esse facilitador de processo e acelerador de resultados. Mas só o faço porque, acima da vontade, necessidade efetiva a isso obriga. Diria Camões “que outro valor mais alto se alevanta”.
Sou dura de integração na modernidade. Parece que nasci fora de tempo, sem o chip certo para aprender a interessar-me e a utilizar os recursos novos. De muitos, acho ilusória a ideia de sirvam os interesses das pessoas, até porque vejo mais vezes as pessoas a servirem os interesses dos recursos. Não quero ser o velho do Restelo, mas contento-me com a ideia de o ser porque me preocupa o futuro-do-futuro nesta estrada onde o futuro-do-presente nos vai despojando de propósito. E sim, talvez me sinta injustiçada quando vejo a inovação roubar a essência da vida. Quando tudo o que tentei construir, palavra a palavra e passo a passo, em anos e anos de luta, se transforma em dúvida por parte de quem me conheceu antes de o mundo ser uma gigante plataforma de maquinazinhas e conteúdos digitais.
De que raio está ela a falar? Perguntariam. E bem! Porque sou humana e a mente dispersa no discurso, em vez de estruturar de maneira perfeitinha e sem espinhas o conteúdo do texto. Estou a falar da fadada Inteligência Artificial. Estou a falar do modo como, pouco a pouco, a vejo ir roubando o espaço das pessoas, criando um preocupante espaço vazio no que ainda existe de humano. Estou a falar do modo como a tenho visto, sorrateira, invadir o meu local de trabalho. Estou a falar da forma como os avisos sobre o seu uso começaram a saltar-me à frente dos olhos, mesmo sem que a use ou queira usá-la. E da forma como a substituição do homem embrutecido pela máquina inteligente gera, entre pessoas, relações de triste desconfiança, que se agrava à medida que se assume que tudo provém das conexões hiper-mágico-lógicas de um ser não-vivo.
Gosto de escrever. É talvez a única coisa da qual sempre gostei. Uma espécie de dom-maldição que arrastei, feito bandeira, pela vida. Trabalhei para poder trabalhar na escrita durante 28 dos meus 34 anos de vida. Insistentemente. Custou-me (quase) tudo. E nunca parei- Nunca desisti. Quis sempre ser melhor do que eu. Do que o eu que fui ontem. A IA é a Bimby dos textos. E chegou, aclamadíssima. Não sei por quanto tempo me vou safar com a minha caneta... ou mesmo com o meu computador velhinho ao qual já faltam – literalmente – duas teclas.
Trouxe uma faca para um tiroteio.
Ou pior. Trouxe um garfo.
Não sei viver neste mundo.
(E o meu Velho do Restelo interior acrescenta que tenho muito, muito pouca vontade de aprender!)
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Não sou a favor da IA mas espero que saibamos sempre distinguir o que vem mesmo do ser humano. O teu texto faz nos refletir. Excelente ponto de vista. Eu também prefiro bater ovos com um garfo do que com a batedeira....bjs
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