Abriu a mão. Entendeu-a. O olhar, quase vazio. O rosto sujo.
As roupas sujas. A calçada suja. As rugas vincadas do rosto, sob a barba
áspera. A cruz, lá no alto. A condenação doentia que o prendia ao chão. As
pessoas passavam. Abriu a mão. Estendeu-a. Mas ninguém o viu.
Raramente alguém o via. Fazia parte da paisagem. Tal como as
estátuas. Por vezes ouvia o som metálico de uma moeda a cair na caixinha das
esmolas. "Para os pobres", dizia a gravação a negro. E ele abria a
mão. Estendia-a. Olhar cheio de preces. Rosto magoado. Roupa gasta. A calçada
fria. As rugas, cada vez mais vincadas. A cruz, lá no alto. A idade que o atava
ao solo.
Era temente a Deus. Não aquele Deus. Qualquer um, na
verdade. Acreditar na divindade era, agora, apenas a força do hábito. Acreditar
era apenas uma forma de justificar o injustificável. De aguentar as torturas do
mundo e das pessoas que entravam na igreja, ignorando a sua mão estendida e
avançando para a redenção, para o céu, deixando para trás a rua e o seu inferno,
feito de fome e frio. Conhecia de cor as missas que se diziam dentro do espaço
da igreja onde sempre o impediam de entrar. Às vezes mimava uma ou outra
passagem, movendo os lábios dos quais, havia muito tempo, nenhum som saía. E,
quando a missa terminava, estendia de novo a mão e aguardava pela corrente
purificada de almas que deixava cair moedas na caixinha das esmolas mas
continuava a não o ver.
Os olhos vazios fechavam-se para não se encherem de
lágrimas. E, no desespero do dia que passava, tecia orações só suas, com
palavras sentidas e choradas. Desejava que chegasse depressa o Natal para ter
duas noites de sopa quente e tecto, promovidas pelos canais de televisão.
Desejava que não tardassem as próximas eleições para receber, no tempo das
campanhas, atenção à debilidade da vida que vivia. Desejava que chegasse a
morte, para que a vida parecesse um Natal em tempo de campanha política. E
desejava, acima de tudo, que ninguém tivesse de fechar os olhos para pedir as
coisas que ele pedia.
Abriu a mão. Estendeu-a. Ninguém o olhou. Mas a mão
continuou estendida, esperando um segundo de caridade. Sobre ela, caiu, sem som
ou aviso, uma gota de água. Seguiu-se outra. E outra. O rosto sujo, sorriu. As pessoas
desapareceram. A cruz permanecia no alto. Ele permanecia no chão. A tristeza
adensou, mas ele sorriu. Talvez, lá no alto, uma divindade entendesse. Talvez
por isso chorasse. E, agora, ele também podia. Podia chorar sem vergonha à
porta da casa de Deus. Era essa a esmola do céu.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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