terça-feira, 9 de abril de 2024

12 mm

 


Parei em frente à montra de uma pastelaria. Olhei para ela. Os doces de Lisboa parecem sempre melhores debaixo da luz. Uma chamada de marketing para o alimento pouco sadio, tantas vezes desnecessário, só para matar a fome à gula. Alimento inflacionado para os turistas. Esvaziando o bolso dos turistas e dos outros. Para que o dono tenha alimento. Para que continue vivo e possa pagar a renda astronómica e o salário do confeiteiro e das duas empregadas de balcão, que prefeririam a companhia de uma terceira nas horas de enchente.

 

Apetece-te alguma coisa? Perguntam-me. Apetece-me tudo. Mas principalmente chorar. Não o digo. Em vez disso, encolho os ombros. Estou só a olhar para o vidro. Estava. Ver o que fica além dele é pura casualidade. Relação de protões e fotões numa escala de luz visível… Mas estou só a olhar para o vidro e a pensar. Um pensamento com exatamente 12 mm.

 

 

12 mm não é nada. Poucas coisas assim seriam medidas. E, mesmo as que são… Cabem um pouco mais de 83 medidas de 12 mm num metro. Com 12 mm de chuva por hora, ainda se fala em chuva fraca… Mas 12 mm também é muito. Mesmo, mesmo muito. É muito quando, trespassado por uma bala de uma 12 mm, alguém se esvai em sangue até perder a vida, deixando mães e irmãos, filhos e amigos com muito mais do que 12 mm de mágoa. É muito quando, escrevendo a receita dos óculos e das lentes de contacto, o médico consulta a tabela distométrica para converter as graduações, considerando os 12 mm de distância a que uma armação coloca as lentes oculares, para que a visão seja precisa. É muito quando, parado onde eu estou, um sem abrigo com fome olha além dos 12 mm de vidro, para a comida à qual não tem direito.

 

Apetece-me chorar. É isto que não digo, mas penso, olhando para os 12 mm envidraçados e toda a sua fragilidade. É isto que não digo, mas penso, quando os olhos fixados deixam de focar os doces lisboetas e focam o reflexo do pedinte que estende a mão às gotas da chuva, para colher as lágrimas dos deuses.

 

Entre mim e o sem abrigo há dois metros que são muitos quilómetros... Tão distantes quanto os 12 mm que o separariam dos bolos, se estivesse onde eu estou. E sinto-me sozinha, como se essa distância fosse também a que me separa de todas as outras pessoas, que seguem pela rua, em passo apressado, um pouco cegas à realidade das montras e das pessoas que pedem esmola na calçada.

 

Apetece-te alguma coisa? Perguntam-me. Estou só a olhar para o vidro. Respondo. Mas a verdade é que estou a olhar para 12 mm de mundo… e para o mundo inteiro. Para a ilusão de proibições feitas de material frágil e pouco denso, a agirem com a precisão metálica das balas das pistolas de 12 mm quando ceifam vidas. Para as lentes dos óculos de quem passa, talvez com graduações mal calculadas e que não consideraram os 12 mm que separam a lente do olho, provocando cegueira seletiva quando se trata de andar pelas ruas ou ver os telejornais.

 

 

Apetece-te alguma coisa? Parada, à frente da montra de uma pastelaria, olhando um vidro e os reflexos no vidro, dou por mim a ver-me a mim mesma e não sei se gosto do que vejo. Quero trincar a realidade e cuspi-la por ser amarga. Apetece-me isso. Cuspir a realidade na cara de quem cospe fel sobre as gentes, sem pensar nela. Sempre é melhor cuspir do que ir engolindo as mentiras que perpetuam este mar frio de tristezas, na ilusão de que não somos parte do problema, nem potenciadores de soluções.

 

Apetece-te alguma coisa? Apetece! Apetece-me um mundo melhor. Para levar! Um mundo onde não haja quilómetros entre mim e os outros. Entre os outros e os outros. Entre os outros e este ser que acho que sou. Apetece-me um mundo onde os bolos da montra sejam, como as gotas de chuva, para todos. Apetece-me um mundo… mas um mundo que não existe. Que me dizem, rindo, que não vai existir. Não respondo. Porque sei que ali se vendem só pastéis para matar a gula. E o que eu tenho é fome de justiça.

 

Não sei se as lágrimas se medem em milímetros, como a chuva. Nem se um choro de 12 mm é um choro fraco. Mas apetece-me chorar.


  Marina Ferraz




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