Quando lhe perguntei como estava, respondeu-me com o olhar.
E o olhar era todo (m)ágoa. Escondeu-o entre os dedos. Refugiou-se, assim, da
inquisitiva demanda presente nos meus. E nunca tive uma resposta.
Atirei-me no penhasco que era o seu corpo. Acreditando que,
num abraço apertado, podia impedir as feridas de jorrar desalento ou reajustar
as quebras, unindo as fissuras numa só pele. E ela afastou o abraço, com medo
da unidade. Porque se cansava das supostas normalidades e da maneira como elas
se sobrepunham aos sentidos.
A sociedade não estava pronta. Explicou. A sociedade não
entendia que ela amava outra ela. E que essa ela a amava. E que bastaria o
silêncio. O olhar para outro lado. Ninguém queria bandeiras. Ninguém queria
palavras de incentivo. Só paz. Sossego. Espaço para poder ser. Para poder ter.
Amor. A sociedade não estava pronta. Ela estava. Para combater a sociedade e o
que viesse a seguir. Mas ela dependia de outra ela. E essa não estava. Pronta.
Preparada. Para lutar.
Disse-me também que eu não entendia. Porque o amava a ele. E
nunca tínhamos vivido sob o escrutínio dolorosamente impresso nas ruas, numa
homofobia calcetada no chão de pedra, onde se insistia em intercalar pedras
azuis e brancas.
Então, eu limpei o rosto dela. E disse. Que entendia. De
coração. Acrescentei. Mais. Também eu amei uma mulher. Foi o meu primeiro amor.
Espantou-se. Nunca me vira senão com ele. Nunca parara para
pensar nisto. E eu expliquei.
Ainda eu não tinha nascido e já amava uma mulher. E ela,
mais liberal do que tudo e do que todos, amara igualmente este ser, ainda sem
género nem identidade, antes mesmo de saber quem eu era ou se eu era alguém. De
mim, pouco importava quem fosse: se homem ou mulher; proclamadora de fés ou
psicopata; sábia ou com dificuldades de aprendizagem. Essa mulher, que eu
comecei a amar antes de ter uma forma, amou-me independentemente de quem eu
pudesse vir a ser.
Dentro dela, construí amor. Juntamente com as pernas e os
braços. E os órgãos sexuais que me determinaram menina, quando ainda não sabiam
quem eu era por dentro. E esta mulher, que se agradou do meu sexo, não fez nele
ideologias sobre a minha sexualidade nem pautou nele as minhas formas de ação.
De mim, tolerou as dores que lhe dava e os mimos sob a forma
de batimento de asa. Conhecia-me mal, posto que nunca me vira. Esse mal era já
melhor do que o conhecimento em soma de todos os que se cruzaram até hoje
comigo.
Eu amei uma mulher. Ainda a amo. E ela a mim. É um amor que
não escreve romances, bem sei. Mas é amor. E não há tal coisa como um amor
genderizado e feito a preceito nas normas do que encaixa ou não no momento dos
corpos dados.
A sociedade é voz. E a voz é música. E as pessoas detestam o
silêncio. Mas ela não merece a (m)água dos teus olhos.
E já não era. (M)água. Nos seus olhos. Era agora brilho.
Todas nós o tivemos. Esse amor lésbico. Gostamos de pensar
que ele é diferente. Porque não é sexual. Nem sexista. Nem algo que se traga ao
pensamento quando a paixão queima.
Mas é amor. Amor é amor. E quem somos nós – as filhas de
alguém – para julgar o amor entre duas mulheres?
Eu amei uma mulher. Ainda a amo. Vou amá-la para sempre.
Mesmo quando me deitar com ele. Mesmo quando disser que o amo. E entendo, sim.
O amor dela. Não porque entendo que ela ama outra ela. Mas porque entendo que o
amor tem muitas formas… e nenhuma delas é um erro.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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