Avó, queria dizer-te, hoje, que ouvi um pássaro. Julguei ouvi-lo.
Lembrei-me de ti.
Pensas que sabes reconhecer a voz de um pássaro. Até sorris. Só de a ouvir. A voz desse pássaro, que chega da janela e entoa a liberdade. Segues o seu canto. Olhas pelo vidro. E é uma retroescavadora.
O chiar mecânico da destruição das árvores arranca-te um bocado da alma com um eucalipto. E os pássaros são silenciados com asas de fuga. Mas não cantam. Quando a poeira assentar, só lhes sobra o céu. E, a mim, sobra o cimento e a memória da destruição, quando a retroescavadora for.
Pensas que sabes. Pensa de novo. As máquinas imitam os pássaros. Esses que matam.
Desculpa avó. Nunca te menti. Afinal não era um pássaro. Vê bem. A casa
que comprei, rodeada de verde, vira uma floresta de betão como as outras...
devagarinho. E logo aqui, onde tinha tanto gosto em mostrar-te as árvores que
nunca viste. Agora não as poderias ver, mesmo que aqui estivesses.
Pensas que sabes quão triste o mundo fica quando se perde quem se ama. Até dizes, para os botões do casaco, pior não fica. Pensas que sabes. Pensa de novo.
Os olhares ocos e vazios da desumanidade e da destruição também passam à porta de tua casa. A pouco e pouco, compreendes que não é a retroescavadora e o eucalipto caído, mas o sentido de ausência que há dentro de quem a conduz e derruba a árvore sem questionar. Não sou eu que mando, dizem. Infelizmente, também não sou eu.
Arranco do peito as angústias e tento não sentir o ódio inato pela devastação. Mas a retroescavadora baixa o balde dentado e arrasta as árvores moribundas para um canto, como se não importassem. E a alma dói-me, assistindo na primeira fila ao que o mundo se tornou, enquanto eu tentava tornar-me melhor.
Avó. Quero tanto ser como tu, que às vezes sou. Mas nunca tinha
percebido que estar triste é arte de quem quer ser digno desse rótulo que nos
dão a todos, sem questionar: humano. Pensei que sabia a fórmula da felicidade e
que ela era mais fácil de aplicar aos dias com um coração puro. Não é! É tão
difícil...
A noite cai e a máquina dorme. A terra respira fundo. O homem foi. Os pássaros pensam que podem voltar, mas não podem. A poeira assenta. A chuva cai. O eucalipto permanece no chão.
Aproxima-se, com a noite, o dia fatídico onde foste o eucalipto
arrancado dos meus dias. E eu, pássaro errante, perdi o colo que me era ninho.
Pensamos que a ferida sara, que cicatriza e não dói tanto. Pensamos que há
outras árvores e outros colos. Pensamos que podemos recomeçar, um passo de cada
vez. Gostava de poder dizer-te que tinhas razão. Sei que pensavas que ficaria
bem sem ti. Mas, avó, pensa de novo!
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