Dizia a novela. “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser
sempre assim”. Talvez. Para ela. Mas não para mim. Eu não nasci assim!
Eu não nasci mulher. Já Beauvoir o
dizia. Ninguém nasce. Tornei-me mulher. Mas só me tornei mulher por causa da
minha mãe. A minha mãe é a mulher que as mulheres querem ser. Irreverente e
forte, mesclando doçura e combatividade nos gestos e nas palavras, capaz de
levar o mundo às costas e de o remendar com mimos e bolo de chocolate. Seria
capaz de levantar do chão um edifício, se um filho estivesse soterrado mas é
com a mesma força que se deixa, por vezes, ser frágil. Eu não nasci assim. Mas
cresci com este exemplo. Tornei-me mulher.
Eu não nasci sensível e
compassiva. Sempre tive agressividade inerte nos ossos, à espera de se libertar,
em pó, na corrente sanguínea para me fazer cruel. Mas também tive uma avó. E a
minha avó é a melhor pessoa pela qual o mundo teve a honra de ser pisado. De
semblante quase sempre triste e sem muito para si, ela é o tipo de mulher que
quer arrancar o sorriso do outro e dar-lhe o seu próprio xaile para o aquecer.
Fiel às suas crenças inabaláveis e dona do seu mundo complicado e cheio de
problemas, ela não deixa, nunca, de ser um espaço de conselho e afago. Frágil
como a época a fez e mais forte do que as histórias contam, ela disse-me muitas
vezes que era importante eu ser boa. Ensinou-me, pedacinho de pão a pedacinho
de pão, a alimentar ovelhas e bons sentimentos. Eu não nasci assim. Mas cresci
com este exemplo. Tornei-me sensível e esforçada por fazer o bem.
Eu não nasci ambiciosa e
trabalhadora. Tenho a certeza de que, em alguns momentos, imaginei que me
bastasse muito pouco da vida, como se passar por ela, encostada algures,
bastasse. Mas, existindo, esta fase não poderia durar. Eu tive um pai. O meu
pai ensinou-me, de pequenina, que a força do trabalho se materializa em
oportunidades e que a oportunidade vale mais do que o ouro, quando é
aproveitada. Trabalhando – que para mim é – e não deixando fugir essas dádivas
dos dias, eu aprendi, aos poucos, não só por palavras mas pelo modelo diário de
um trabalho árduo e sem queixume. Não nasci assim. Mas cresci com este exemplo.
Aprendi a ser dedicada e trabalhadora.
Eu não nasci divertida. E houve
muitas pessoas que mo disseram. Mas havia o meu irmão. O meu irmão é uma pessoa
incrível, capaz de sorrir nas adversidades e sempre com um comentário que
arranca riso aos outros. É a companhia que todos querem quando estão mal e que
todos querem quando estão bem. E alguém que, de forma quase inconsciente, me deu
o modelo exato do que eu gostaria de ser. Não nasci assim, é verdade. Mas
cresci com este exemplo. Aprendi a fazer rir os outros.
Eu não nasci menina do campo. Pelo
contrário. Nasci citadina e muito longe dos prazeres telúricos da vida. Mas
tive um avô. O meu avô era o homem forte do campo, com a quarta classe e uma
sabedoria maior do que o tempo. O meu avô levou-me, nos braços, ao mundo
idílico da aldeia. Tornou-me amante de vindimas, de fruta arrancada da árvore e
comida sem sequer lavar, de mãos e pés e cabelos sujos de terra. O amor à terra
viria a fazer-me pagã. Mas eu não nasci assim. Cresci assim neste exemplo.
Aprendi a amar a Natureza.
Eu não nasci altruísta. Tenho um
umbigo e olhei muito para ele ao longo da vida. Mas houve a minha irmã. A minha
irmã é uma daquelas pessoas que, quando passa, é furacão. Mas é um furacão
muito específico porque não se importa de pôr de lado seja o que for, se for
para ajudar alguém. Por mais do que uma vez, ao longo da vida, ela foi senhora
de atitudes que duvido que alguém mais tivesse. Nos gestos, carrega amor e
cuidado e carinho. Nos gestos, carrega humildade e despretensão. Dá e nunca
espera retorno. Eu não nasci assim. Tive a sorte de crescer neste exemplo.
Aprendi a dar-me aos outros sem expetativa.
Eu não nasci com fé no futuro. Em
alguns dias, ainda sinto que não existe muito futuro para que se tenha fé nele.
Mas tenho quatro sobrinhos. Neles, encontro traços de plenitude, de beleza, de
irreverência, de luta, de intervenção, de veracidade, de defesa pelos direitos
humanos e pela Natureza. Neles, encontro a fé que me falta no mundo e a
esperança em gerações vindouras. Eu não nasci com fé no futuro. Mas eles
nasceram e eu aprendi com eles. Aprendi que vale a pena tentar outra vez
amanhã.
Eu não nasci assim. Como sou.
Aprendi a sê-lo, com os dias passados entre quem soube ensinar-me. A ser gente.
A ser. Eu não nasci assim. Mas nasci aqui. Nesta que é a minha nação, a minha
identidade e o mais estreito dos meus dogmas. Se me perguntam quem eu sou, a
resposta é: o que me tornaram. Se me perguntam de onde eu sou, a resposta é: da
minha família.
Eu nasci aqui. E cresci aqui. E
aprendi a ser gente aqui. O meu lugar é o amor. E eu sei onde ele mora.
Adorei o texto.
ResponderEliminarSó podes ser feliz, ok!?
Tu tens tudo. A começar pela família que embora conhecendo um pouco superficialmente e não integra, só posso estar de acordo contigo. É de certeza justo e merecido este texto, mas é muito enaltecedor para ti também este pensamento, ainda por cima feito desta maneira tão artistica, como é teu timbre.
A todos em resumo, Parabéns!!!
És uma mulher de sorte. Mas sobretudo de boas famílias.
ResponderEliminarSonho em um dia construir uma família assim.
Excelente texto ;)