Eu nunca quis ser gente sem sal.
Mas, isto eu juro: quando eu matei o amor, a minha intenção não era matá-lo…
Encontrei o amor nos desencontros
da vida. Perguntei-lhe se queria vir, a meu lado, até ao lugar das coisas
loucas. O amor era inocente. Achou que a loucura era palavra de uso. E veio.
Eu achei que tinha sido clara. Ele
achou o mesmo. Toda eu era hipérbole. Todo ele era eufemismo. Quando eu
encontrei o amor, já não vínhamos na mesma página da gramática. Mas isto foi só
o começo.
Eu não sabia, quando alimentei o
amor, que ele era alérgico ao açúcar excessivo que eu colocava nos alimentos
que lhe servia. E não sabia que a vela no centro da mesa onde eu servia esses
excessos, pegaria sucessivamente fogo às veias incandescentes onde ardia paixão
e aos estômagos aziados de embriaguez, fazendo arder também cortinas, colchas,
fotografias e sentimentos.
Eu não sabia, quando enchia a
banheira de água demasiado quente e com espuma até ao teto, que o amor teria
dificuldade em sentar-se comigo e um copo de vinho, sem se afogar nas bolhas de
amónia e se inebriar com o perfume melífluo do ópio que aquecia as carnes e as
tornava mais rijas antes de as tornar mais moles.
Eu não sabia, quando cortava
frases ao meio para as empilhar em versos que viravam estrofes, que o amor se
deixava degolar pelo gume cego da minha caneta, trocando athames por facas
cerimoniais; tinta vermelha por sangue; e harmonia por vitimismo. Não larguei a
caneta nem me apercebi de que houvesse ângulos mortos na condução da mesma
pelas linhas do papel.
Muito menos imaginei, naquele
tempo, que ele fosse receber com estranheza o ato perfeitamente natural de o
guardar dentro. Como é que um amor experiente, que dizem andar aí desde tempos
medievais (ou até imemoriais), julga que alguém se contenta com ter nos braços
algo que pode ter dentro? Ele não era meu filho para que o trouxesse nos braços
e às cavalitas. O amor – disse-lhe – quer-se dentro do peito, dentro da alma,
no âmago de nós.
Desculpa, está bem? Eu convidei-te
a ser louco.
Mas ele não sabia que o lugar da
loucura era louco.
E eu não sabia que o amor não era
imortal.
Sem força para ripostar, o amor
acedeu. Veio. E era feio. Era o tipo de amor que eu sabia amar. Vinha enjoado,
aziado, envenenado. Vinha queimado e afogado, repleto de cortes. Não era um
amor muito bonito e em bom estado. Mas era o meu. Ali. No lugar da loucura.
Essa que eu sou.
Eu nunca quis ser gente sem sal. E
ele veio. Débil, ali se acocorou e perdeu a força da palavra. Ali se encolheu e
perdeu a vida.
Quando eu matei o amor, a minha
intenção não era matá-lo. Mas eu nunca quis ser gente sem sal. Na perspetiva do
amor, eu sei: todos os meus excessos foram sufoco e veneno, todos eles
queimaram, rasgaram e sangraram a vida azul e luminosa dos olhos matutinos,
fazendo crepúsculo na aurora.
Agora, morto dentro de mim, ainda
por enterrar, o amor junta-se ao sal com o qual me temperei para ser gente.
Nesse rito antigo que se fazia aos maus e aos pecadores. Salgando-lhes a campa
para que ali nada mais nascesse.
Quando eu matei o amor, matei-o de
o querer vivo. Nunca quis ser gente sem sal. O sal mata e tempera e preserva a
temperada esperança imortal dos corpos sem vida. Trago um cadáver sólido de
paixão encostado do lado esquerdo do peito. Às vezes, pulsa por engano. Nenhum
dos dois sabia. Agora, ambos sabemos. Ali, não nasce mais nada.
Nunca nasce na cicatrize, mas há sempre mais coração que cicatriz 😊😘
ResponderEliminar