Eu não penso em vocês quando escrevo!
Peço desde já desculpa pela falta de formalidade e cerimónia, totalmente proveniente de um forte sentido de desatenção à norma e ao politicamente correto.
Sim, eu gosto que me leiam. Muito. E valorizo imenso cada crítica que me faz crescer. E cada elogio que me faz sorrir. E cada comentário, cada reação, cada partilha! Mas eu não penso em vocês quando escrevo.
Sabem?! Um texto meu é a maior distância entre dois pontos. É a maior distância, quero eu dizer, que eu, sendo eu, posso criar entre dois pontos. Não!... Não me estou a explicar bem! O que eu quero dizer é que, apesar de toda a pequenez e ausência de utilidade prática de um texto meu e da minha própria insignificância, o texto que escrevo reforça e por vezes aumenta a distância entre dois pontos e são pontos que estão a uma distância infinita. Suspiro. É impossível dizê-lo! Posso dizê-lo, claro. Mas não consigo explicar de forma a que entendam. Mesmo isto, ao ser lido, passa automaticamente pelo processo de criação de desentendimentos. Entendam: o que eu queria dizer quando o disse e o que vocês leram agora não é a mesma coisa!
Há um texto. Um texto que fui eu que escrevi. O uso do possessivo significa isso. Que o escrevi. Digo que é o meu texto. Quando o público lê, o texto perde o possessivo que tem e ganha outro. Na leitura, ele é o vosso texto. O meu texto não é o vosso texto, mesmo que seja o mesmo texto. Um texto é muitos textos. E é por isso que um texto meu é a maior distância entre dois pontos, porque abre espaço a um infinito desentendimento.
Não faltam situações em que as pessoas se identificam com o que digo, nem situações em que a discordância vem de uma interpretação que eu nem tinha pensado. Enlouqueceria depressa se tentasse escrever de forma a agradar a todos. E é por nem tentar fazê-lo que não terei um best seller tão cedo (ou alguma vez...).
Eu não penso em vocês quando escrevo!
Penso num mundo onde existe uma desmesurada preocupação com “será que devo dizer/fazer/escrever isto?”, uma auto-censura que recuso para mim. Penso em todas as pessoas que estão a passar pelo frio, fome, guerra. Penso que muitas delas não sabem escrever. Que muitas delas não podem. Que mesmo que soubessem e pudessem, essa não seria uma prioridade. Penso nelas quando escrevo, porque me recordam de que as palavras que digo (e não as que os outros leem) significam algo. Valem algo. Valerão algo, mesmo que ninguém lhes dê valor.
Vem do português do Brasil uma expressão que amo: “Lugar de fala”. O meu lugar de fala é de privilégio. Neste lugar de gente com teto sobre a cabeça (e computador onde escrevo este texto, com uma manta quentinha sobre as pernas), sem bombas a explodir lá fora e com comida no frigorífico e na despensa. Então, quando escrevo, eu não penso em vocês. Gente que abre o computador ou pega no telemóvel para ler – e se ofender ou amar – o texto desta semana. Penso em quem não escreve, nem lê. Quero profundamente que o meu texto seja esse espaço de desentendimento, de compreensão sobre o quanto não entendemos a realidade dos outros, porque é distante e não nos come a carne. Um texto meu é a maior distância entre dois pontos. Mas é também a forma de tentar reduzi-la. De tentar acordar corações para essa realidade fria e longínqua.
Os meus textos são desconfortáveis. Quando os escrevo. Quando os leem. Eu não penso em mim quando escrevo. Nem em vocês. Eu penso que estou aqui e não sei para quê. Mas que, se não tentar pegar no meu privilégio para tentar estreitar a maior distância entre esses dois pontos, não estou aqui a fazer nada.
Eu não penso em vocês quando escrevo.
Escrevo. Só. Porque às vezes parece que é a única coisa que me mantém viva. Como se também houvesse uma guerra de fome e frio debaixo das mantas, que vou vencendo de todas as vezes que alguém se incomoda por eu o fazer. Como uma vozinha que sussurra no meu ouvido: talvez, talvez, afinal faça diferença.
Por isso, leiam. E sintam. E digam-me. Mesmo que não concordem mesmo nada com o que leram – seja ou não o que eu disse. Talvez um dia, juntos, na escrita, na leitura, na interpretação, os textos possam ser como as linhas retas. A distância mais curta entre dois pontos.
Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"
enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com
Sem comentários:
Enviar um comentário