terça-feira, 19 de novembro de 2024

O nome esquecido

 

Imagem gerada por I.A.

Tenho pena de deus. Esse que alguns escrevem com maiúscula. Usaria maiúscula se soubesse o seu nome. Mas conheço-lhe apenas o cargo. Acredito que seja um workaholic mais velho do que o tempo, tão focado no cargo de poder que já não se lembre bem de que nome tem ou como chegou a tão alto patamar, ou quando foi a última vez que descansou.

 

O deus do qual tenho pena é um deus único, amado e odiado, que de tão omnipresente não está de facto em lugar nenhum. Cresci a ouvir falar dele e nunca constou que tivesse mãe. Nunca me disseram que tivesse pai. Irmão. Irmã. Tios. Primos... Alguns disseram-me que ele era pai e mãe. Alguns disseram-me que ele tinha tido um filho, mas que esse filho era também filho de uma pomba, de um carpinteiro e de uma virgem. Alguns disseram-me que ele era todo-poderoso. Nunca ninguém me disse se ele era feliz. Ou se estava bem. Quando foi a última vez que comeu. Quando foi a última vez que passeou pela Natureza que ele mesmo criou. Quando foi que adormeceu com luz estrelas a bater no rosto ou o beijo de qualquer uma das múltiplas luas do universo.

 

Tenho pena dele, embora não saiba a resposta a nenhuma destas perguntas. Porque se os homens e mulheres não as fizeram antes de mim, é talvez porque ninguém queira realmente saber de deus. Ou pior, talvez porque só queiram que ele queira saber deles, e só se lembrem dele quando precisam de alguma coisa.

 

Se deus tivesse pai e mãe, talvez lhe dissessem que, na Terra, a retórica política usa a religião como motor de legitimação da autocracia. Que pessoas como Ventura, Bolsonaro, Trump ou Putin, entre muitos outros na História, já disseram, de forma direta ou indireta, que foram enviados por ele, para cumprir um qualquer papel messiânico na salvação de países ou do mundo. Que um suposto “povo eleito” é culpado de genocídio. Se deus tivesse pai e mãe, eles diriam, caso isto seja verdade, que talvez seja hora de repensar as escolhas. Talvez lhe dissessem: “filho, todas as tuas decisões têm consequências”. E talvez ele ouvisse, como alguns adolescentes ouvem, entre revirares de olhos, adequando a ação para criar o mundo de paz e amor .

 

Assinam-se documentos que permitem o uso de armas nucleares, montam-se tendas e camas de cartão nas ruas da cidade, destroem-se outras tendas em campos de refugiados, e onde dormiam mulheres, crianças, bebés, gente, é deixado apenas o grito da morte e destroços.

 

De deus, sabemos só o que nos dizem. E a fé mais bonita dos homens permanece, em orações que valem ouro, porque estão cheias de benquerença e compaixão. Tenho fé em algumas pessoas que rezam e defenderei o direito de qualquer pessoa ter a fé que tem, mesmo que eu não a tenha. E viverei desejando que essa fé seja um motor bonito para uma vida melhor e uma maior empatia e um amanhã que mereça ser vivido. Mas de deus eu conheci uma história triste. Aquela que me contaram, sempre na perspetiva dos homens. Disseram-me que deus salvaria o mundo. Nunca que o mundo salvaria deus. O mundo não o salva. O mundo está a matá-lo, se é que existe, usando-lhe o formal nome em nome de coisa nenhuma. E eu tenho pena de deus, porque o imagino velho e meio senil, sabendo que é deus porque tem o cargo mais complexo de todos e lho lembram diariamente, mas já sem lembrar que nome tem... ou se alguma vez o teve... ou para que o teria, se o soubesse, já que ninguém lhe pergunta como se chama.

 

Sussurro às estrelas. Se estás aí e existes, diz-me como te chamas. Quero saber se és feliz. Quero saber se estás bem. Quero dizer-te que tens de repensar as tuas escolhas. O silêncio abraça-me. O smog da cidade cobre o céu. Por entre a poluição, se há resposta, eu não a ouço.


Marina Ferraz




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