terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Armas




Algumas pessoas nascem com armas. Outras aprendem a construí-las. Há ainda aquelas que, de tão fascinadas pelos mundos da guerra, se dedicam a procurá-las, cavando com os dedos na pele alheia, em busca dos artifícios que lhes preencham os arsenais. Têm as mãos levemente ensanguentadas. E sorrisos nos rostos. Matar dá-lhes um prazer que preenche mais do que qualquer refeição e sacia mais do que qualquer bebida divina. Matar é ser-se imortal. Por alguns segundos. Antes de voltar a sede. E a fome. Pela carne e o sangue e os ossos espalhados sobre a arena da vida.

Há uma guerra aberta em cada conversa. E em cada gesto. E em cada sussurro de ponteiro de relógio. Disparam-se as armas. As que se trazem, as que se fazem, as que se procuram. E todos são culpados desse desejo, mais ou menos patente, mais ou menos abstruso, pela carnificina que se faz ao outro. Contando que todos saiam a andar. Inteiros. Com duas pernas e dois braços. Olhos rodando nas órbitas. Passos coxos apenas de insistir nos saltos. E orelhas moucas como a moda dita. Basta que saiam todos a andar. Ninguém repara. Nos bocados espalhados pelo chão, não tão diferentes dos restos de carnes na tábua do talho. Porque são bocados de alma. E a alma sangra uma seiva invisível. Algo amarga mas sem cheiro. E não deixa no ar a noção da morte que caminha. Com passos coxos e orelhas moucas.

Foram os meus passos e as minhas orelhas. Muitas vezes. E a minha alma. Mas isso ninguém sabe, porque não se vê. Das armas que usaram contra mim, sempre esperei inovadoras tramas e princípios. E não me desiludiram nunca as mãos e as bocas e os olhos que as disparavam. Lançando balas de sopro, onde desprezo, ódio, arrogância, insensatez, mentira, despeito, rancor e maldade se uniam num metal muito fino. Dilacerante. Que acertava em cheio. Dentro. Deixando-me caídos os bocados meio mastigados da carne da alma. Pelo chão. Enquanto eu ia.

Durante toda a vida, a única arma que eu alguma vez tive foi a minha escrita. E as palavras, que eram as balas. E as folhas que eram campos. E as linhas, que eram guias. E as margens, que eram regras. Mas arma? Arma, só tive uma. Essa. A escrita.

Escrevi. Cada texto era uma recolha, de joelhos no solo, apanhando os pedaços da minha alma e juntando-lhe as peças, feito quebra-cabeças. Nunca lhe prometi que voltasse a ser una. Tentei sempre que fosse bonita.

Mas quando a alma dói. Quando olha ao espelho e não se reconhece. Ela própria pega nas armas. Na arma. Na escrita. E diz. Diz o que deve. Diz o que não deve. Diz o que quer. Odeia toda a gente. Diz que odeia. Mas depois ora pela humanidade como se a amasse. E torna-se bipolar de ideias e pensamentos dispersos. Tudo é cinza. Tudo é cor. Tudo dói. E fazemos um gesto de carinho, de mão passada com leveza, palma sobre pele, nesse irregular segredo de cicatrizes invisíveis e dores indizíveis.

Aprendemos a ser fortes assim. Amando. Até o que nos derruba. Até o que nos quebra. Por vezes, mais o que nos abala e destrói. Numa loucura que só não é louca porque se diz amor.

A única arma que eu alguma vez tive foi a minha escrita. Não é uma arma que sirva propósitos maiores, salvo se alguém ler. Mas, por uma vez ou duas, venci batalhas inesperadas, onde a chance era de um contra um milhão.

Se vale a pena? Não vale! Mas cada um luta com o que tem. Eu tenho isto. Terei sempre isto. E joelhos que se dobrem para me ajoelhar. E mãos que recolham os pedaços quebrados de mim. Quando as armas dos outros forem mais fortes que as minhas. Ou quando – por amor – eu não quiser revidar.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet


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