Para a minha avó
Vou contar-vos sobre ela. Talvez não acreditem nos traços
com os quais pinto a imagem. Mas vou contar-vos, ainda assim. Não a ilusão. Não
a irrealidade. A verdade cândida, pura e imutável com a qual, desde menina, a
vejo ser mulher. Se ler as minhas palavras, ela será a primeira a rebatê-las.
Vai dizer que não me merece as palavras. Que não merece os elogios. Que não
merece. E não será com falsa humildade que o fará. Será de lágrimas nos olhos e
coração nas mãos. Ela é mesmo assim...
Vou contar-vos sobre ela. Nasceu noutros tempos. A época em
que nasceu veio-lhe impressa na pele, na alma, nos traços todos de um feitio
que ficou lá e nunca se adaptou aos dias de hoje. Reflete-se nos jeitos com os
quais cumprimenta as pessoas, sempre cordial e simpática, sem deixar o hábito
do "senhor doutor" e do "minha senhora". Reflecte-se nos
agradecimentos frequentes e na forma como sempre demonstra aflição pelos
pesares alheios. Reflecte-se na forma como se exalta com as mentiras políticas e
com as maldades que se cometem pelo mundo todos os dias. Sim: ela não pertence
ao nosso tempo. Chegou aqui ainda agarrada a conceitos e noções que ficaram para
trás há décadas e décadas. Não evoluiu com o tempo. Muitos ririam dos seus
jeitos e troçariam das suas noções sobre o mundo. Mas a verdade é que ela as
trouxe, qual guia de orientação, e que foi desse livro nunca escrito que
retirei muito do que me tornou eu. O passado diz muito sobre o lugar para onde
o mundo deveria ir no futuro. Foi ela que me ensinou isto.
Vou contar-vos sobre ela. Não foi apenas sobre o passado que
ela me ensinou. Ensinou-me, talvez antes de tudo, sobre a vida. Foi uma das
minhas maiores professoras. Ensinou-me a ler, a escrever e, usando sempre a
ameaça do "vou contar à tua
mãe" (ameaça que nunca cumpriu com medo de me ver sofrer consequências),
ensinou-me até a fazer as contas que sempre detestei. Acreditem ou não, chegou
a passar horas seguidas, nas vésperas dos testes a fazer aquilo que ambas
apelidámos de "pôr a matéria na
cabeça". Dou-lhe o crédito por muitas das boas notas que tive e
admiro-lhe a paciência incansável com a qual, por entre o cansaço das horas
passadas, insistia comigo: "vá lá,
vamos ver isto só mais uma vez.". Fosse no começo desta trama ou no
seu final, ela acreditava sempre em mim. Não importava que eu não soubesse uma
palavra para o teste de História ou que não tivesse aprendido, ainda, as
conjugações e os tempos verbais que iam ser testados em Português. Ela olhava
para o meu cansaço nervoso de menina, pousava a mão sobre a minha e dizia: "Vai correr bem... agora vai escrever
isto cinco vezes e depois vem cá, que eu pergunto-te a lição". Com
lágrimas nos olhos, eu ia. E, quando voltava, às vezes sabia, às vezes não.
Hoje, isso não importa. Com o passar dos anos percebemos que o que importa é
outra coisa: independentemente das tristezas, da preocupação, do cansaço e das
tarefas que tinha para cumprir, ela pôs-me sempre em primeiro lugar. Nunca me
falhou. Nunca me faltou. Esteve sempre lá para mim.
Vou contar-vos sobre ela. Tivemos muitos desacordos: sobre a
forma como a vida deve ser, sobre a forma como o mundo deve ser, sobre a forma
como uma menina deve ser. À medida que cresci, salientaram-se as diferenças de
opinião. Discutimos bastante. Às vezes, porque ela insistia, na sua teimosia,
em não ver a realidade do nosso século. Às vezes porque eu insistia, na minha
teimosia, em viver crises parvas de adolescente intolerante. Fui injusta com
ela muitas vezes. Cheguei a fazê-la chorar - não o choro usual de mulher
sensível e emocional - o choro triste e magoado de quem não merece palavras
duras e as ouviu. Arrependo-me disso. Mas ela não guarda ressentimento... ainda
hoje não sente que eu precise de pedir desculpa. E nunca sentiu. No final
dessas brigas, convidava-me para lanchar, para ir comer um gelado ou, quando
cresci, para ir beber um café. De todas as pessoas que conheço ela é a que
melhor aprendeu a perdoar. O amor que tem guardado dentro de si chegaria para
colmatar o enorme buraco negro que o mundo tem no seu centro e dar alguma
esperança à humanidade dormente que nele vive.
Vou contar-vos sobre ela. Acredita em Deus com fervor.
Defenderia a sua fé perante tudo e todos. No entanto, quando lhe contei que a
minha fé não era a mesma, ela olhou para mim, fez duas ou três perguntas e
disse-me: "sabes? Tinha um livro que
dizia que, desde que seja para fazer o bem, todas as religiões são boas". Depois
sorriu. E sabem os Deuses - o dela e os meus - que não houve sorriso mais
bonito do que aquele, tão cheio de amor e aceitação. E, fosse sobre religião ou
não, ela aceitou sempre. Aceitou-me sempre. Acreditou sempre em mim.
Sobre ela, posso contar isto e outras coisas. Um infinito de
coisas. Posso contar como ela me faz rir com as suas histórias, como me faz
deitar fumo a falar das notícias que passam na televisão, como faz por estar
presente em todos os dias importantes. Posso contar como, mesmo hoje que já sou
adulta, ela me telefona para me embalar com um beijinho de boa noite, todas as
noites.
Ela é um mundo de coisas que podem ser contadas e um
universo de coisas que não podem. Uma das melhores pessoas do mundo. Uma das
minhas pessoas favoritas. E sei que, na sua humildade, sempre sincera e fora de
época, ela diria que não. Mas é. Pelo menos, é-o aos meus olhos. Não sei o que
se chama a uma mulher assim! Sabendo a sua história, alguns iriam chamar-lhe
heroína, outros mentora, outros amiga... e eu poderia chamar-lhe tudo isso...
mas, por força do hábito e honra do destino, chamo-me avó.
Marina Ferraz
Perfeito.
ResponderEliminarlindo e espectacular beijinhos...
ResponderEliminarOh Raquel, consegui ver isso tudo na tua avó das vezes q foi lá ao salão, com a mãe, com a Marisa e contigo...li tudo com lágrimas no olhos! Parabéns querida, MT sucesso.
ResponderEliminarJudith Chande
Tua avó é uma pessoa incrível,assim como és,porque ambas trazem em si amores maiores que o mundo e fazem de tudo por quem gostam.
ResponderEliminarAmei :D
Beijinhos Jenny ^.^