terça-feira, 6 de outubro de 2015

Sobre ela



Para a minha avó

Vou contar-vos sobre ela. Talvez não acreditem nos traços com os quais pinto a imagem. Mas vou contar-vos, ainda assim. Não a ilusão. Não a irrealidade. A verdade cândida, pura e imutável com a qual, desde menina, a vejo ser mulher. Se ler as minhas palavras, ela será a primeira a rebatê-las. Vai dizer que não me merece as palavras. Que não merece os elogios. Que não merece. E não será com falsa humildade que o fará. Será de lágrimas nos olhos e coração nas mãos. Ela é mesmo assim...

Vou contar-vos sobre ela. Nasceu noutros tempos. A época em que nasceu veio-lhe impressa na pele, na alma, nos traços todos de um feitio que ficou lá e nunca se adaptou aos dias de hoje. Reflete-se nos jeitos com os quais cumprimenta as pessoas, sempre cordial e simpática, sem deixar o hábito do "senhor doutor" e do "minha senhora". Reflecte-se nos agradecimentos frequentes e na forma como sempre demonstra aflição pelos pesares alheios. Reflecte-se na forma como se exalta com as mentiras políticas e com as maldades que se cometem pelo mundo todos os dias. Sim: ela não pertence ao nosso tempo. Chegou aqui ainda agarrada a conceitos e noções que ficaram para trás há décadas e décadas. Não evoluiu com o tempo. Muitos ririam dos seus jeitos e troçariam das suas noções sobre o mundo. Mas a verdade é que ela as trouxe, qual guia de orientação, e que foi desse livro nunca escrito que retirei muito do que me tornou eu. O passado diz muito sobre o lugar para onde o mundo deveria ir no futuro. Foi ela que me ensinou isto.

Vou contar-vos sobre ela. Não foi apenas sobre o passado que ela me ensinou. Ensinou-me, talvez antes de tudo, sobre a vida. Foi uma das minhas maiores professoras. Ensinou-me a ler, a escrever e, usando sempre a ameaça do "vou contar à tua mãe" (ameaça que nunca cumpriu com medo de me ver sofrer consequências), ensinou-me até a fazer as contas que sempre detestei. Acreditem ou não, chegou a passar horas seguidas, nas vésperas dos testes a fazer aquilo que ambas apelidámos de "pôr a matéria na cabeça". Dou-lhe o crédito por muitas das boas notas que tive e admiro-lhe a paciência incansável com a qual, por entre o cansaço das horas passadas, insistia comigo: "vá lá, vamos ver isto só mais uma vez.". Fosse no começo desta trama ou no seu final, ela acreditava sempre em mim. Não importava que eu não soubesse uma palavra para o teste de História ou que não tivesse aprendido, ainda, as conjugações e os tempos verbais que iam ser testados em Português. Ela olhava para o meu cansaço nervoso de menina, pousava a mão sobre a minha e dizia: "Vai correr bem... agora vai escrever isto cinco vezes e depois vem cá, que eu pergunto-te a lição". Com lágrimas nos olhos, eu ia. E, quando voltava, às vezes sabia, às vezes não. Hoje, isso não importa. Com o passar dos anos percebemos que o que importa é outra coisa: independentemente das tristezas, da preocupação, do cansaço e das tarefas que tinha para cumprir, ela pôs-me sempre em primeiro lugar. Nunca me falhou. Nunca me faltou. Esteve sempre lá para mim.

Vou contar-vos sobre ela. Tivemos muitos desacordos: sobre a forma como a vida deve ser, sobre a forma como o mundo deve ser, sobre a forma como uma menina deve ser. À medida que cresci, salientaram-se as diferenças de opinião. Discutimos bastante. Às vezes, porque ela insistia, na sua teimosia, em não ver a realidade do nosso século. Às vezes porque eu insistia, na minha teimosia, em viver crises parvas de adolescente intolerante. Fui injusta com ela muitas vezes. Cheguei a fazê-la chorar - não o choro usual de mulher sensível e emocional - o choro triste e magoado de quem não merece palavras duras e as ouviu. Arrependo-me disso. Mas ela não guarda ressentimento... ainda hoje não sente que eu precise de pedir desculpa. E nunca sentiu. No final dessas brigas, convidava-me para lanchar, para ir comer um gelado ou, quando cresci, para ir beber um café. De todas as pessoas que conheço ela é a que melhor aprendeu a perdoar. O amor que tem guardado dentro de si chegaria para colmatar o enorme buraco negro que o mundo tem no seu centro e dar alguma esperança à humanidade dormente que nele vive.

Vou contar-vos sobre ela. Acredita em Deus com fervor. Defenderia a sua fé perante tudo e todos. No entanto, quando lhe contei que a minha fé não era a mesma, ela olhou para mim, fez duas ou três perguntas e disse-me: "sabes? Tinha um livro que dizia que, desde que seja para fazer o bem, todas as religiões são boas". Depois sorriu. E sabem os Deuses - o dela e os meus - que não houve sorriso mais bonito do que aquele, tão cheio de amor e aceitação. E, fosse sobre religião ou não, ela aceitou sempre. Aceitou-me sempre. Acreditou sempre em mim.

Sobre ela, posso contar isto e outras coisas. Um infinito de coisas. Posso contar como ela me faz rir com as suas histórias, como me faz deitar fumo a falar das notícias que passam na televisão, como faz por estar presente em todos os dias importantes. Posso contar como, mesmo hoje que já sou adulta, ela me telefona para me embalar com um beijinho de boa noite, todas as noites.

Ela é um mundo de coisas que podem ser contadas e um universo de coisas que não podem. Uma das melhores pessoas do mundo. Uma das minhas pessoas favoritas. E sei que, na sua humildade, sempre sincera e fora de época, ela diria que não. Mas é. Pelo menos, é-o aos meus olhos. Não sei o que se chama a uma mulher assim! Sabendo a sua história, alguns iriam chamar-lhe heroína, outros mentora, outros amiga... e eu poderia chamar-lhe tudo isso... mas, por força do hábito e honra do destino, chamo-me avó.

Marina Ferraz





4 comentários:

  1. lindo e espectacular beijinhos...

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  2. Anónimo21:27

    Oh Raquel, consegui ver isso tudo na tua avó das vezes q foi lá ao salão, com a mãe, com a Marisa e contigo...li tudo com lágrimas no olhos! Parabéns querida, MT sucesso.
    Judith Chande

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  3. Tua avó é uma pessoa incrível,assim como és,porque ambas trazem em si amores maiores que o mundo e fazem de tudo por quem gostam.
    Amei :D
    Beijinhos Jenny ^.^

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