Recordo-me dele. Moço peculiar dos tempos modernos.
Engravatadinho e com ar de senhor dos seus passos, com sola de couro paga pelo
pai e roupa passada a ferro pela mãe que o via, certamente, pelo maternal
filtro opaco e que se emocionava ao chamar-lhe doutor. Ainda não era doutor.
Seria, mais tarde, quando o nariz, largando as nuvens, encontrou um equilíbrio
paralelo ao chão e a sua atitude petulante amenizou.
Recordo-me dele. Era um moço com muitas opiniões. Tantas,
que se formavam e desvaneciam na efemeridade dos momentos. Tinha, por exemplo,
uma opinião ao pequeno-almoço, com os pais, mas outra surgia, na mesma
temática, assim que lia o jornal matutino. Esta evoluía no caminho para a
faculdade e mudava ou não, consoante a posição tomada pelo professor. No final
do dia, tinha passado por três clubes de futebol e cinco partidos políticos.
Mas sempre os defendia de forma igual. Irrepreensível. Cheia de opiniões
concretas e justificadas com argumentos irrebatíveis.
Recordo-me dele. Moço galante. Durante o tempo em que o
conheci, encontrou vinte vezes a sua alma gémea. Aquela que referia como
"a tal", "a mais bonita do mundo", "aquela com quem
havia de casar". Enfatizava-lhes sempre as características. Tinham os olhos
mais belos. Da sua cor favorita que, em alguns dias, era azul; noutros verde; noutros
castanho. Tinham gostos iguais aos seus, quer se dedicassem ao desporto ou à
costura. E as meninas derretiam nas suas palavras. Acreditavam nelas com afecto
e devoção.
Recordo-me dele. Moço de lida fácil e de simples trato.
Tinha muitos amigos. E concordava sempre com todos, fosse qual fosse o tema ou
a ideia. Parecia viver num equilíbrio perfeito com as mentes alheias. Nunca
discordava de ninguém. Nem mesmo quando, no mesmo espaço, aqueciam os ânimos na
enunciação bipolar das ideias geradoras de conflito. Nunca lhe faltavam argumentos
amenizadores. Defendia, em simultâneo, todas as opções com palavras recheadas
de confiança e convicção. E todos queriam o brinde das suas palavras, porque
era nelas que depositavam derradeira confiança.
Recordo-me dele. Moço de educação cuidada. Dizia sempre
"bom dia" ao entrar na sala. Pedia-me a bênção. E a sua mãe, minha
mulher, dizia "estão-lhe destinadas grandes coisas". Estavam. Tinha a
mente jovem e distorcida, maleável. Bons estudos pagos, a custo, do meu bolso,
tantas vezes vazio. Tornou-se político. Anda por aí a pregar a importância da
família e do trabalho. Vejo-o na televisão. Digo aos companheiros da casa de
repouso que é o meu filho.
Recordo-me dele. Mas, de alguma forma, ele esqueceu. De
alguma forma, ele já não se recorda de mim.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Sigam também o meu instagram, aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário