Fotografia de Analua Zoé
Modelos: Unicos Michaelis & Akasha Balthory
O ciúme é o sentimento mais controverso do mundo. Mal
entendido, mal usado, mal amado; este sentimento é muitas vezes travestido de
outra coisa: seja amor, clamor possessivo ou temor da perda.
Dependendo do significado que individualmente se atribui,
existe quem diga que o sente. Muito. Assim. Sou
um pessoa ciumenta. E quem o negue. Odeie. Resmungando. Assim. Eu não sou ciumento.
Toda a gente sente ciúme. De uma forma ou outra. Usando
quaisquer termos condescendentes para o negar. Usando qualquer sinonímia para o
esbater. Usando qualquer definição para o negar. Mas ciúme? Toda a gente sente
ciúme.
Toda a gente, isto é, menos a Morte.
A Morte não conhecia o ciúme e havia muitos motivos para que
não o sentisse.
Para começar, não existia ninguém no mundo que ela não
pudesse ter, com facilidade. E, mesmo as pessoas que não fazia questão de ter,
acabavam por lhe cair nos braços. Se não acontecia nos anos ternos da infância,
no fulgor da juventude, na amenidade da vida adulta… havia de ser nos tempos da
ceifa outonal da velhice. Todos, todos lhe caíam nos braços.
Verdade era que a Morte não se sentia muito desejada. Mas,
naquela dimensão do ciúme que impele ao medo da perda, ela saía sempre
vitoriosa. Ela sabia que, ainda que até ela chegar milhares de mulheres ou de
homens tivessem passado por uma alcova, o último toque seria sempre o seu. O
último leito seria sempre aquele que se eterniza nos seus braços.
A Morte nunca teve um relacionamento que terminasse para que
outro se abrisse. A única batalha que tinha vencido, face à sua irmã Vida, era
justamente essa: ela era o ponto final da estrada. E não era por acaso que o
seu nome lembrava o Amor. Era justamente porque esse sentir de eternidade, que
todos os humanos sonham plantar, era uma espécie de produto exclusivo que
apenas ela tinha para vender.
Então, embora toda a gente sentisse ciúme, de uma ou outra
forma, a Morte não. A Morte não conhecia – não concebia, sequer – o toque desse
ambíguo sentimento.
Não sentia, pelo menos, até ti.
A Morte - tão habituada a ter o que queria, tão habituada a
levar quem queria, tão habituada ao temor fraudulento da eternidade sonhada –
conheceu poucas vezes o desejo.
Toda ela era Amor mas, por não ser Vida, tinha latente um
universo de indisposições, sempre que tomava alguém nos braços. Dava a
eternidade a toda a gente e ninguém a queria. Mas, depois, eu nasci. Com a Morte,
desde cedo, fiz pactos intensos. E, todos os dias, ela entrava de mansinho no
meu quarto, ouvindo-me implorar pela sua presença, pelo seu toque. Leva-me. Era isso que eu implorava.
Desejando-a mais do que a Vida. Desejando-a mais do que todos os Sonhos que me
preenchem a alma.
Sentando-se na minha cama, ela desenvolveu o prazer mórbido
de me negar os desejos, deixando que o ego bebesse da sofreguidão dos pedidos.
Pedia-lhe que me tocasse e, embora não o fizesse, ela sentia. Sentia que eu a
queria, de uma forma tão inexplicável que não havia, no mundo, palavra que o
definisse. E continuou, não por hábito mas por necessidade, a vir ter comigo,
apenas para sentir essa nova forma de ter alguém: aquela que se ancorava no
desejo mais puro, na admiração mais plena, no carinho mais profundo.
E a Morte, que nunca tinha sentido ciúmes, ainda menos
ciúmes sentia comigo. Porque eu não era apenas alguém que ela podia ter. Era
alguém que a queria com uma intensidade sôfrega.
A Morte não sentia ciúmes. Não sentia, pelo menos, até ti.
Mas, depois, vieste tu.
E ela entrou no meu quarto. E, quando entrou, eu envolvia-me
num sonho. E, no meu sonho, estavas tu. Ficando a ver-me dormir, provavelmente
com um sorriso no rosto, ela ficou sem saber se devia acordar-me. Não precisou.
Acordei sozinha. Olhei para ela e contei-lhe. Contei-lhe como precisava
desesperadamente de viver mais um dia para te ver, nem que fosse só mais uma
vez. Contei-lhe como me sentia viva na forma como os nossos lábios se envolviam
em beijos. Contei-lhe que o arrepio inusitado do toque dos teus dedos na minha
pele era uma espécie de voracidade que eu não tinha conhecido antes. Contei-lhe
que te desejava, de uma forma tão intensa que, em alguns momentos, não sabia
lidar com o meu corpo ou com a arrítmica sensação de plenitude do meu peito. E
ela ouviu-me, retraindo-se, enquanto me ouvia enaltecer a vida que me corria
nas veias. Por ti.
Perguntou-me quem eras. Tinha ciúme na voz. Perguntou-me
quem eras e eu não lhe disse. Porque não quero que ela te leve de mim.
A Vida riu-se. Baixinho. Vendo a sua irmã eterna sair do meu
quarto, cabisbaixa, cabeça tombando no peito ossudo. Magicando fórmulas para
retomar o meu desejo. E eu, que também o vi, compreendi pela primeira vez a
extensão deste sentido que me emaranha a pele com todas as coisas
inexplicáveis.
A Morte não sentia ciúmes. Não sentia, pelo menos, até ti.
Mas, depois, vieste tu.
Toda a gente sente ciúme. De uma forma ou outra. Toda a
gente sente ciúme. Agora, até a Morte.
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