quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Luz




Nem a luz direta entra nos olhos vazios, conquistados pelas sombras e os abismos do mundo. Ser poeta não é ser luz. É justamente ser sombra e abismo. Morar nos olhos que vertem. Para que outros olhos se iluminem.

Pedaços fragmentados de gente. Que passam pelas ruas, como gente. Mas sem que ninguém veja. Que são gente. Fragmentos inusitados e gestos que são sombra. Encontrando nos murais da rua mensagens. Também elas fragmentos com vida própria. Trazendo negrume à luz das avenidas.

Colocamos sal nas feridas. E pedras sobre os olhos cansados da insónia. A culpa é da tinta – pensamos. Do caixão. Da ideia que permanece rota e sentada sobre o sono. Acutilante. Constantemente chamando. Constantemente querendo saber se falta muito para chegar lá. À luz. A essa que não temos.

Recordo a água nos teus olhos. Um mergulho veraneante, numa espécie de sol que tu tens e eu nunca tive. Pergunto se fui o espaço onde a tua luz se acendeu ou o local onde ela se foi. Terei sido o abismo e a sombra de ti? Preocupa-me que eu seja escuridão. Mas preocupa-me mais que queiras que eu seja apenas a luz lisa do sol alto do meio-dia. E se eu estiver condenada a ser sombra e abismo? E se for isso – já pensaste?! – a fazer brilhar o sol que julgas ser teu, enquanto me julgas por roubá-lo ao céu, todos os dias, para que possas tê-lo?

Não! Tens razão. Eu não sou luz. E não brilho sob o toque luminoso do sol que trazes contigo. Não gero alegrias no meu ventre podre e infértil. Em vez disso, arranco do peito o fino fio de cristal que me fazia gente no olhar alheio. Afio-o noite dentro. Faço um punhal que me rasgue a pele. Faço do sangue, tinta. Anoiteço. Escrevo-te uma constelação de alegrias para que possas, no dia seguinte, ser novamente um espetro dissidente da minha dor e viver a tua vida em paz.

Drena-me a tua presença porque te dediquei a minha. Sobra pouco do sal nas minhas entranhas quando tudo o que quero proteger em mim és tu. E dói. E, porque dói, escrevo. E, porque escrevo, sinto a luz esmorecer, como um dia que anoitece. Nem a luz direta entra nos olhos vazios, conquistados pelas sombras e os abismos do mundo.

Não, meu amor, eu não sou como toda a gente. Eu nem sei se sou gente. E, por certeza, trago a noção de que só amo os verões porque sou gelo à espera de derreter novamente no sol dos teus olhos.

Mas ser poeta não é ser gente. Ser poeta não é ser luz. É justamente ser sombra e abismo. Morar nos olhos que vertem. Para que outros olhos se iluminem. Para que os teus se iluminem.

Não há luz direta que me entre nos olhos. E talvez seja melhor assim. Para que não vejas que eles choram. E nunca saibas que o fazem para que os teus possam sorrir.






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