Nem a luz direta entra nos olhos vazios, conquistados pelas
sombras e os abismos do mundo. Ser poeta não é ser luz. É justamente ser sombra
e abismo. Morar nos olhos que vertem. Para que outros olhos se iluminem.
Pedaços fragmentados de gente. Que passam pelas ruas, como
gente. Mas sem que ninguém veja. Que são gente. Fragmentos inusitados e gestos
que são sombra. Encontrando nos murais da rua mensagens. Também elas fragmentos
com vida própria. Trazendo negrume à luz das avenidas.
Colocamos sal nas feridas. E pedras sobre os olhos cansados
da insónia. A culpa é da tinta – pensamos. Do caixão. Da ideia que permanece
rota e sentada sobre o sono. Acutilante. Constantemente chamando.
Constantemente querendo saber se falta muito para chegar lá. À luz. A essa que
não temos.
Recordo a água nos teus olhos. Um mergulho veraneante, numa
espécie de sol que tu tens e eu nunca tive. Pergunto se fui o espaço onde a tua
luz se acendeu ou o local onde ela se foi. Terei sido o abismo e a sombra de
ti? Preocupa-me que eu seja escuridão. Mas preocupa-me mais que queiras que eu
seja apenas a luz lisa do sol alto do meio-dia. E se eu estiver condenada a ser
sombra e abismo? E se for isso – já pensaste?! – a fazer brilhar o sol que
julgas ser teu, enquanto me julgas por roubá-lo ao céu, todos os dias, para que
possas tê-lo?
Não! Tens razão. Eu não sou luz. E não brilho sob o toque
luminoso do sol que trazes contigo. Não gero alegrias no meu ventre podre e
infértil. Em vez disso, arranco do peito o fino fio de cristal que me fazia
gente no olhar alheio. Afio-o noite dentro. Faço um punhal que me rasgue a
pele. Faço do sangue, tinta. Anoiteço. Escrevo-te uma constelação de alegrias
para que possas, no dia seguinte, ser novamente um espetro dissidente da minha
dor e viver a tua vida em paz.
Drena-me a tua presença porque te dediquei a minha. Sobra
pouco do sal nas minhas entranhas quando tudo o que quero proteger em mim és
tu. E dói. E, porque dói, escrevo. E, porque escrevo, sinto a luz esmorecer,
como um dia que anoitece. Nem a luz direta entra nos olhos vazios, conquistados
pelas sombras e os abismos do mundo.
Não, meu amor, eu não sou como toda a gente. Eu nem sei se
sou gente. E, por certeza, trago a noção de que só amo os verões porque sou gelo
à espera de derreter novamente no sol dos teus olhos.
Mas ser poeta não é ser gente. Ser poeta não é ser luz. É
justamente ser sombra e abismo. Morar nos olhos que vertem. Para que outros
olhos se iluminem. Para que os teus se iluminem.
Não há luz direta que me entre nos olhos. E talvez seja
melhor assim. Para que não vejas que eles choram. E nunca saibas que o fazem
para que os teus possam sorrir.
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