Tu deste-me a praia. Lembras-te? Vinha toda dentro de um
búzio pequenino, que me cabia na palma da mão. Com veios trabalhados a cinzel e
um espaço oco no centro, onde o mar cantava.
Enquanto me colocavas a praia na mão, tu sorrias. E foi
nesse sorriso que me deste a praia, colocando-a dentro do búzio que, pousado na
minha mão, parecia pequeno demais para conter os prazeres estivais da vida.
Amas-me? Era uma pergunta que se fazia no canto que entoavam
as sereias dentro desse búzio. E eu respondi que sim. E acho que era por isso
que tu sorrias.
Como nunca foste uma pessoa que gostasse de contratos ou de
normas, decidiste assinar a escritura da cedência dessa propriedade
informalmente pública com as impressões digitais dos pés, marcando os teus
passos ao lado dos meus. Felizes e vincados na areia que o mar lambia.
Tu deste-me a praia. Lembras-te? Mas eu disse-te que, embora
a praia fosse minha e viesse nesse búzio que pousei na minha cozinha, eu não me
importava que outros caminhassem nas suas areias ou se banhassem nos seus
mares. E disse-te: não me importo, porque quero que todas as pessoas sejam tão
felizes como eu sou agora. Aqui. Contigo. Nesta praia que me deste.
No coração do nosso lar, as sereias cantavam dentro do
búzio, recordando-me o chamado das ondas que tinham servido de testemunhas ao
nosso amor e que sabiam que, ainda que visitada por tantos outros, aquela praia
era minha.
Até ao dia em que a voz foi silenciada. Aconteceu, de forma
meio inesperada, quando as paredes da casa viraram, também, uma concha oca,
onde não havia mais do que a ilusão dos tempos idos. As sereias fizeram um
esgar arrepiante, dilacerante, num grito estridente, que soou ao bater da porta
da entrada. E o lar, que era um lar, passou a ser o espaço vazio onde durmo e
permaneço só.
Tu deste-me a praia. Lembras-te? Algures com um sorriso que
tinha pendurado um brilho nos olhos, hoje apagado de sóis. Algures com o toque
musical dos dedos que agora não se dignam nem a acariciar teclas para um “bom
dia” de ocasião. Algures com o amor que o mar lambeu, a par com as pegadas,
deixando olvido e insignificância.
Tu deste-me a praia. E mesmo sabendo-a minha, eu ainda quero
que todas as pessoas sejam tão felizes como eu fui, pelo que não a reclamo. Mas
a areia sabe que é minha. E o oceano sabe que é meu. E insistirão em apagar as
pegadas que agora ladeiam as tuas, desvinculando qualquer contrato cujas
cláusulas queimem as nossas.
Um dia, na erosão da vida, também eu serei areia. Talvez,
aí, tenha um lugar dentro do teu coração. Ou, pelo menos, dentro do búzio.
Esse, com o qual me deste a praia. E os melhores dias da minha vida.
Um texto poético, muito bonito, que faz de uma história feliz que termina, um poema!
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