terça-feira, 2 de julho de 2019

Dentro do búzio




Tu deste-me a praia. Lembras-te? Vinha toda dentro de um búzio pequenino, que me cabia na palma da mão. Com veios trabalhados a cinzel e um espaço oco no centro, onde o mar cantava.

Enquanto me colocavas a praia na mão, tu sorrias. E foi nesse sorriso que me deste a praia, colocando-a dentro do búzio que, pousado na minha mão, parecia pequeno demais para conter os prazeres estivais da vida.

Amas-me? Era uma pergunta que se fazia no canto que entoavam as sereias dentro desse búzio. E eu respondi que sim. E acho que era por isso que tu sorrias.

Como nunca foste uma pessoa que gostasse de contratos ou de normas, decidiste assinar a escritura da cedência dessa propriedade informalmente pública com as impressões digitais dos pés, marcando os teus passos ao lado dos meus. Felizes e vincados na areia que o mar lambia.

Tu deste-me a praia. Lembras-te? Mas eu disse-te que, embora a praia fosse minha e viesse nesse búzio que pousei na minha cozinha, eu não me importava que outros caminhassem nas suas areias ou se banhassem nos seus mares. E disse-te: não me importo, porque quero que todas as pessoas sejam tão felizes como eu sou agora. Aqui. Contigo. Nesta praia que me deste.

No coração do nosso lar, as sereias cantavam dentro do búzio, recordando-me o chamado das ondas que tinham servido de testemunhas ao nosso amor e que sabiam que, ainda que visitada por tantos outros, aquela praia era minha.

Até ao dia em que a voz foi silenciada. Aconteceu, de forma meio inesperada, quando as paredes da casa viraram, também, uma concha oca, onde não havia mais do que a ilusão dos tempos idos. As sereias fizeram um esgar arrepiante, dilacerante, num grito estridente, que soou ao bater da porta da entrada. E o lar, que era um lar, passou a ser o espaço vazio onde durmo e permaneço só.

Tu deste-me a praia. Lembras-te? Algures com um sorriso que tinha pendurado um brilho nos olhos, hoje apagado de sóis. Algures com o toque musical dos dedos que agora não se dignam nem a acariciar teclas para um “bom dia” de ocasião. Algures com o amor que o mar lambeu, a par com as pegadas, deixando olvido e insignificância.

Tu deste-me a praia. E mesmo sabendo-a minha, eu ainda quero que todas as pessoas sejam tão felizes como eu fui, pelo que não a reclamo. Mas a areia sabe que é minha. E o oceano sabe que é meu. E insistirão em apagar as pegadas que agora ladeiam as tuas, desvinculando qualquer contrato cujas cláusulas queimem as nossas.

Um dia, na erosão da vida, também eu serei areia. Talvez, aí, tenha um lugar dentro do teu coração. Ou, pelo menos, dentro do búzio. Esse, com o qual me deste a praia. E os melhores dias da minha vida.






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1 comentário:

  1. Um texto poético, muito bonito, que faz de uma história feliz que termina, um poema!

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