quinta-feira, 27 de junho de 2019

Se eu me afogar



As chuvas caem e os rios aumentam o caudal. E os mares nascem. E os glaciares derretem. E a preocupação humana é pouca. Mas, quando existe, faz-se em lágrimas. Que choram. As lágrimas têm lágrimas vertidas no seu próprio rosto de gota. Um choro que se faz pranto. Um pranto que se evapora. Até adensar as nuvens. Essas de onde caem chuvas que aumentam o caudal dos rios.

Bruscamente envolvida pela história dos ciclos, também eu sou água que verte. Verto a minha própria história de gente. E, por ser gente com história, acredito que exista valor na parte de mim que escorre. Ainda que ela escorra em tinta.

Nunca imagino que vá estar, do outro lado do meu lago sangrento de ideias, alguém que compreenda as bestas escondidas na superficialidade do fundo de mim. Porque as feridas causadas pelos homens estão à frente. E são tudo o que se vê quando não se rasga a camada da carne dos textos.

As chuvas caem e os rios aumentam o caudal. E os mares nascem. E os glaciares derretem. Se eu me afogar, não faz mal. Fui só mais uma pessoa que não andou na chuva, com o medo de ter cabelos humedecidos, roubando horas de esforço num encaracolar indesejado. Fui só mais uma pessoa que não mergulhou no rio, com medo do gelo cortante na pele. Fui só mais uma pessoa que não salvou os ursos polares. Se eu me afogar, não faço falta ao mundo.

Mas. Mas. Eu também fui outra coisa. Também fui o riso em noites de temporal. Danças de pés descalços em chafarizes de pedra, com as gotas grossas caindo no meu corpo. Menina nadando debaixo de cascatas. Mulher abençoando a pele com o toque das águas, num agradecimento às ondinas, às sereias e às ninfas. Amante da terra. Apaixonada pelas paisagens de gelo agreste que, de tão extensas, são fotografia do amor que se pôs e me lembram de passados que aconteceram (quase) agora. Se eu me afogar. Se eu me afogar, quem é que vai dizer às ondinas e às sereias e às ninfas que se escondam na chegada dos homens que não entendem? E quem vai amar a terra? Fazer amor com as flores primaveris? Entregar um fio de cabelo por cada pedra roubada que ornamenta um altar vivo e cheio de plenitudes?

As chuvas caem e os rios aumentam o caudal. E os mares nascem. E os glaciares derretem. Se eu me afogar, chuvas continuarão a cair e rios continuarão a entrar pelas margens. E os oceanos continuarão a embater na costa como se dissessem “acordem”. E os glaciares continuarão a derreter porque as pessoas só sabem salvar-se a si mesmas. Mas, e se eu não me salvar? E se eu derreter, como os glaciares? E se eu deixar que vertam todas as lágrimas que acumulam dentro do meu peito?

Esse choro inundaria o mundo. Destruiria o mundo. Faria do mundo uma gigante roda de águas salinas e emocionais. Mas não se preocupem. Primeiro, encherei um copo. Depois, uma banheira. Depois, um quarto. Nesse quarto vou afogar-me. Se eu me afogar, o mundo nunca vai saber que eu podia ter inundado o universo de dor. Se eu me afogar, apenas eu terei partido e tu(do) estará(s) bem. Se eu me afogar, não choro mais.






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