Ele pousou a bandeja e sentou-se na minha mesa. Do outro
lado da mesa. Suspirou. Mas o suspiro foi mais um sopro descontente, que se
mesclava com o ambiente soturno do bar, fazendo-o pesar um pouco mais sob o
ambiente mal iluminado.
Olhou para mim. Analisando. Porque os empregados dos bares
fazem sempre isso. É uma parte dos requisitos de contratação, essa medição dos
danos emocionais de uma rapariga com base no comprimento da saia e na extensão
do decote. Notei que parou no meu peito e que fixou o pendente, sem saber muito
bem se devia fazer um comentário contemplativo, filosófico ou humorístico.
Optou por não fazer comentário nenhum e agradeci-lhe o silêncio com um olhar
esquivo, de quem não quer falar.
Quando voltei a olhar para ele, era uma sombra e não uma
pessoa. Mas tinha voz. Perguntou. “E, portanto, o que vai ser?”, a pergunta
permeada de sentidos que não fazia sentido, apenas porque ele estava sentado do
outro lado da mesa e era um fantasma, numa ondulação meio negra, atrás do fumo
das velas.
Pedi o habitual. E
citando o costume, o hábito, eu percebi que era, agora, essa figura ridícula e
cheia de rotinas. Essa que se sentava e pedia o pedido de sempre, sabendo que o
fantasma de um funcionário que não existia ia saber o que eu queria.
Levantou-se. Ou teria levantado, se tivesse pernas. Afastou-se
com a intenção de trazer esse pedido que nunca voltaria para a mesa. Dissipou
no ar, com os cenários toscos pintados pela minha imaginação.
Eu estava sentada na mesa da cozinha, com um copo onde
ondeava um limão meio sóbrio, numa bebida meio ébria, porque tudo é às metades
na minha vida. Este era o meu bar eterno, de sopros descontentes, onde o
pendente brilhava sem que ninguém tivesse, sobre ele, contemplativos ou
filosóficos dizeres.
O meu decote era uma camisola de pijama e as meias tinham o
sorriso eterno do Monstro das Bolachas. Talvez, daqui a mais alguns goles, ele
deixasse de sorrir também. Agora, parecia que troçava da imaginação que me
pintava bares e funcionários na cozinha, iluminada com duas velas esquivas, que
ondeavam ao ritmo da brisa mal isolada que penetrava as janelas térreas.
Pedir o habitual era pedir amor on the rocks. E, olhando
para dentro do copo, descobria que o gelo no amor era justamente o que tinha
sobrado. Um amor crioconservado, que me fazia respirar ácidos em vez de ar, na
cozinha solitária onde continuava a imaginar que havia quem me servisse. Ou
quem me acompanhasse. Ou simplesmente alguém.
Beber golos de solidão nos copos cheios e imaginar.
Sobrava-me esse direito. Mas, aos poucos, o travo amargo das bebidas
recordava-me do gelo e o gelo recordava-me do frio das quatrocentas e cinquenta
e cinco noites em que dormi desgarrada.
Vertem-se os líquidos e as pedras de gelo. Vertem-se os
sonhos. E as lágrimas. E espera-se no deserto da ilusão pela noite que é de
insónia e pela manhã que nasce ao som do comboio matinal.
As velas ardem até ao fim. Se eu fosse gente e fizesse anos,
talvez as soprasse. Mas eu já sou velha. E não estou viva. Vou durando. Copo a
copo. Vivendo assim. Como o amor e a esperança. On the rocks.
"Beber golos de solidão nos copos cheios e imaginar..."
ResponderEliminarBebi com sofreguidão pensativa cada palavra desta frase.