terça-feira, 5 de abril de 2022

O crepitar do fogo

 


 Para o meu pai


 

Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na tua alma.


 *


Menino descalço. Caracóis meio alourados, pé na terra. Senhor de muitas artes que se converteriam em talentos. Olhos verdes. Tinha a rocha e o ferro como sobrenomes. Nascera sob a regência do fogo. Carneiro de signo e homem de essência. Destinado a cuidar dos outros.

 

Se lhe perguntassem, naqueles dias, era feliz e leve. O sol africano beijando-lhe a pele nua e trigueira. A família rindo, por entre dificuldades e histórias da Metrópole longínqua. O sabor do coco no Caril e do amendoim na Moamba. As carabinas pousadas na porta, brinquedo inegado e destinado à caça...

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, criança selvagem, aprendendo a ser gente, ele já estava lá, dentro da sua alma contente com os dias.

 

Os desígnios das Florestas são sábios, mas o homem é imaturo e tonto. Se, dos ciclos da Mãe retira sabedoria, dos ciclos da sua espécie faz tortura. O ciclo é o mesmo. Tudo vive. Tudo morre. Um dia, ainda jovem, entrou-lhe o ciclo da morte pela porta da casa cuja porta nunca se fechava. Ficou sem pai. Lançando sobre os irmãos e a pobre mãe o olhar abnegado, verde como a copa dos embondeiros, e alicerçando a vida nos ombros, largos como o tronco dos embondeiros, tomou a obrigação por sua. Cuidar. Cuidar como o fogo cuida das gentes, protegendo-as e alimentando-as.

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, jovem adulto, aprendendo a ser pai-sem-ser, ele já estava lá, dentro da sua alma lutadora.

 

Pegou nas armas e lutou na guerra. Disparando armas de fogo. Gente contra gente. Nunca acertou em ninguém. Diz. Foi sempre a arma do colega, do amigo, do outro soldado. Cumpriu o papel. Esse. De defender o indefensável. Depois, no mês do seu nascimento, alguém colocava um cravo rubro numa espingarda... e as verdes colinas viravam sete colinas... e a condição de homem virava condição de cidadão de segunda. O fogo disparado pelo cravo foi, talvez, a bala mais cruel. Tinha as roupas do corpo e não era, já, a criança despida. Nem criança. Nem despida. Mas era só o que restava de tudo o que um dia tivera, pé no chão e riso à mesa cheia...

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, retornado, aprendendo a aceitar as circunstâncias, ele já estava lá, dentro da sua alma descontente.

 

Apaixonou-se. Apaixonou-se por uma mulher que era toda Floresta. Selvagem. Precisou de a segurar num banco, cativa sob a chuva copiosa, para a convencer a marcar uma data para o casamento. Jovial, cavalheiro e charmoso, foi com ela que construiu uma família, sem se deixar assustar pelo sogro, que lhe mostrara a arma da caça antes do “bom dia” ou pelo olhar da sogra, ave atenta a todos os seus movimentos, estendendo a asa sobre a menina, filha única e de temperamento rebelde.

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, adulto em princípio de vida, aprendendo a pessoa que nascera para ser, ele estava lá, dentro da sua alma feliz.

 

Nasceriam três filhos desse amor. Por entre viagens, que o levavam de volta à terra alegre de seu nascimento, onde já não pertencia, trazendo-o de volta à terra da seriedade de um povo triste, onde não sentia pertencer. Pertenceu, então, aos seus. E quis dar-lhes tudo o que não teve, com o mesmo fogo que o levara a fazer tudo o resto. Tempestades e bonança. Idas e regressos. Palavras e silêncios. Todos condensados em momentos breves, de cavalitas à mais pequena, conversas sérias com os mais velhos...

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, envelhecendo, sendo sem se questionar e questionando tudo o resto, ele estava lá, dentro da sua alma madura.

 

*


Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na tua alma.

 

Toma a forma de força, ainda que ganhe beleza nos momentos de fragilidade. E tem um toque de calor que vem naquele abraço, meio corrido, sempre que chego e saio.

 

Trago no sangue a tua África – fogo que ouço crepitar em ti – e a tua história, que é contada pelos estalidos dessa lenha que arde e arde e arde... e te faz inteiro no mundo.

 

Aprendo, contigo, a ser como o embondeiro, embora os meus olhos não tenham o verde das copas. Os meus ombros terão, por certo, a largura dos troncos...

 

Disparo as armas. Não as de fogo, mas outras. Luta permanente pelos meus dias, que tentam verter-me o sangue – que é também teu – de tantas formas inusitadas e mordentes. Venço sempre. Porque perder não é opção...

 

Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Eu ouço. Porque o teu fogo crepita ao ritmo do meu. Tens rocha e ferro no apelido. Eu tenho a dádiva e o ferro, esse que vem de ti e é teu. Somos forjados a fogo nas histórias dos outros. Esta, que é tua, também é minha.

 

Avanço descalça pelo chão. Honro a Natureza, que é Mãe. Conto-lhe que o meu pai és tu. Ela diz que talvez não ouças o crepitar do fogo. Esse que mora na tua alma. Sossego-a e digo que não importa... eu ouço!


 Marina Ferraz





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