Para o meu pai
Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na tua alma.
Menino descalço. Caracóis meio alourados, pé na terra. Senhor de muitas artes que se converteriam em talentos. Olhos verdes. Tinha a rocha e o ferro como sobrenomes. Nascera sob a regência do fogo. Carneiro de signo e homem de essência. Destinado a cuidar dos outros.
Se lhe perguntassem, naqueles dias, era feliz e leve. O sol africano beijando-lhe a pele nua e trigueira. A família rindo, por entre dificuldades e histórias da Metrópole longínqua. O sabor do coco no Caril e do amendoim na Moamba. As carabinas pousadas na porta, brinquedo inegado e destinado à caça...
Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, criança selvagem, aprendendo a ser gente, ele já estava lá, dentro da sua alma contente com os dias.
Os desígnios das Florestas são sábios, mas o homem é imaturo e tonto. Se, dos ciclos da Mãe retira sabedoria, dos ciclos da sua espécie faz tortura. O ciclo é o mesmo. Tudo vive. Tudo morre. Um dia, ainda jovem, entrou-lhe o ciclo da morte pela porta da casa cuja porta nunca se fechava. Ficou sem pai. Lançando sobre os irmãos e a pobre mãe o olhar abnegado, verde como a copa dos embondeiros, e alicerçando a vida nos ombros, largos como o tronco dos embondeiros, tomou a obrigação por sua. Cuidar. Cuidar como o fogo cuida das gentes, protegendo-as e alimentando-as.
Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, jovem adulto, aprendendo a ser pai-sem-ser, ele já estava lá, dentro da sua alma lutadora.
Pegou nas armas e lutou na guerra. Disparando armas de fogo. Gente contra gente. Nunca acertou em ninguém. Diz. Foi sempre a arma do colega, do amigo, do outro soldado. Cumpriu o papel. Esse. De defender o indefensável. Depois, no mês do seu nascimento, alguém colocava um cravo rubro numa espingarda... e as verdes colinas viravam sete colinas... e a condição de homem virava condição de cidadão de segunda. O fogo disparado pelo cravo foi, talvez, a bala mais cruel. Tinha as roupas do corpo e não era, já, a criança despida. Nem criança. Nem despida. Mas era só o que restava de tudo o que um dia tivera, pé no chão e riso à mesa cheia...
Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, retornado, aprendendo a aceitar as circunstâncias, ele já estava lá, dentro da sua alma descontente.
Apaixonou-se. Apaixonou-se por uma mulher que era toda Floresta. Selvagem. Precisou de a segurar num banco, cativa sob a chuva copiosa, para a convencer a marcar uma data para o casamento. Jovial, cavalheiro e charmoso, foi com ela que construiu uma família, sem se deixar assustar pelo sogro, que lhe mostrara a arma da caça antes do “bom dia” ou pelo olhar da sogra, ave atenta a todos os seus movimentos, estendendo a asa sobre a menina, filha única e de temperamento rebelde.
Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, adulto em princípio de vida, aprendendo a pessoa que nascera para ser, ele estava lá, dentro da sua alma feliz.
Nasceriam três filhos desse amor. Por entre viagens, que o levavam de volta à terra alegre de seu nascimento, onde já não pertencia, trazendo-o de volta à terra da seriedade de um povo triste, onde não sentia pertencer. Pertenceu, então, aos seus. E quis dar-lhes tudo o que não teve, com o mesmo fogo que o levara a fazer tudo o resto. Tempestades e bonança. Idas e regressos. Palavras e silêncios. Todos condensados em momentos breves, de cavalitas à mais pequena, conversas sérias com os mais velhos...
Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, envelhecendo, sendo sem se questionar e questionando tudo o resto, ele estava lá, dentro da sua alma madura.
Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na tua alma.
Toma a forma de força, ainda que ganhe beleza nos momentos de fragilidade. E tem um toque de calor que vem naquele abraço, meio corrido, sempre que chego e saio.
Trago no sangue a tua África – fogo que ouço crepitar em ti – e a tua história, que é contada pelos estalidos dessa lenha que arde e arde e arde... e te faz inteiro no mundo.
Aprendo, contigo, a ser como o embondeiro, embora os meus olhos não tenham o verde das copas. Os meus ombros terão, por certo, a largura dos troncos...
Disparo as armas. Não as de fogo, mas outras. Luta permanente pelos meus dias, que tentam verter-me o sangue – que é também teu – de tantas formas inusitadas e mordentes. Venço sempre. Porque perder não é opção...
Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Eu ouço. Porque o teu fogo crepita ao ritmo do meu. Tens rocha e ferro no apelido. Eu tenho a dádiva e o ferro, esse que vem de ti e é teu. Somos forjados a fogo nas histórias dos outros. Esta, que é tua, também é minha.
Avanço descalça pelo chão. Honro a Natureza, que é Mãe. Conto-lhe que o meu pai és tu. Ela diz que talvez não ouças o crepitar do fogo. Esse que mora na tua alma. Sossego-a e digo que não importa... eu ouço!
Sem comentários:
Enviar um comentário