terça-feira, 12 de abril de 2022

Herança

 



Não tenho muito dinheiro. Não tenho muitos bens. Não tenho muito cuidado com a saúde. E peço desculpa a quem ficar. Não deixarei muito...

 

 

Desculpa. Sei que é de bom tom cultivar, na vida, algo que fique depois do seu fim. Mas eu não me preocupei – não preocupo! – muito com isso.

 

Os meus dias são feitos em redor das palavras. Acordo e adormeço com elas. Moedas caem no meu cofre e entregam-se ao custo de vida. Viver é caro. Pago o preço do essencial. Do teto sobre a cabeça. Das mercearias, quase sempre escrutinando a promoção da semana, o cupão de desconto e investindo, mesmo assim, nas marcas da casa. Uso a roupa até estar gasta e os sapatos até que a sola esteja fina ou quebre. Vou a este e aquele jantar ocasionais, e não olho aos preços. Mas costuma sobrar... Mês. No fim das contas pagas.

 

Duvido, por isso, que quando fechar os olhos para descansar da felicidade que foi viver o meu sonho, tenhas dinheiro à espera, para te preencher a conta e te aligeirar a jornada. Prometo que não te deixarei também dívidas. Ao menos isso. Mas não posso garantir nada mais. Fica com os meus cadernos, se quiseres. Com a caligrafia dançante e irregular, que sempre dependeu do dia, da caneta e da vontade, como se eu fosse mil entidades distintas e dissonantes.

 

Os meus dias são feitos de momento. Não me poupo aos açúcares, às gorduras, ao álcool. Não me poupo a nada que me apeteça. Não quero morrer saudável. Digo-o. Há quem ria. A frase decorada e tão minha. Não quero que digam, quando eu morrer, “coitadinha, era tão saudável”. Não o dirão. Porque não era. Como o que quero. Bebo o que quero. Faço o que quero. Tão depressa encho a boca de chocolate, como de vinho ou impropérios. Faço questão de ser livre, sem me importar muito. É em não me importar muito que encontro a minha forma de me importar muito. Mas só com o que importa. Viver plenamente, nesses pequenos-grandes prazeres que me tornam completa.

 

Se eu morrer de repente, sabe que guardo os chocolates na gaveta do fundo da cozinha. E na fruteira. Talvez encontres algumas garrafas de vodka na gaveta dos legumes do frigorífico. Podes ficar com elas.

 

Controlada, mas livre, tenho a certeza de que tenho as veias e artérias de uma pré-velha. Está tudo bem. Tenho a certeza de que o meu fígado me detesta e se torna católico a cada shot de absinto. Diz “credo” muitas vezes. Os olhos são míopes e obrigados a fitar a luz azul do computador por tantas horas, que quando os fecho ainda vêem uma tela luminosa. O meu coração. Bem. De pouco serve senão para a arte descompassada da arritmia. E imagino que esteja cheio de crateras. Como a lua.

 

Quando eu morrer, não esperem que possam tirar deste corpo muito mais do que um ou outro osso que esteja inteiro. Não acho que vá ser elegível para transplantes e cirurgias que salvam vidas. Peço perdão. É egoísmo, eu sei...

 

Tudo o que tenho é a vida. Feita de maus hábitos, que só deixarei com a morte. De pessoas a quem nada deixarei depois dela. Nem filhos hei de deixar, vê bem... não deixarei quem leia este texto e se dececione com a escassez da herança.

 

Desculpa. Escolhi, da vida, somente a vida. E, por isso, foi só vida que tive. Quando ela acabar, não sobrará muito...

 

Mas deixo-te este texto. Porque te amo.

E mil poemas onde te dediquei o coração esburacado.

E um sem fim de momentos, onde a minha droga foste tu.

 

Escolhi, da vida, somente a vida. Não tenho muito dinheiro. Não tenho muitos bens. Não tenho muito cuidado com a saúde. E peço desculpa a quem ficar. Não deixarei muito...

 

 

Mas, quando eu já não estiver, a minha herança será essa. A de ter vivido. Plenamente.

 

Fica com essa lição. E sê feliz.


  Marina Ferraz





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