terça-feira, 19 de abril de 2022

Um corpo de água

 



Deixa fluir. É isso que digo a mim mesma. Mas não me ouço. Falo baixinho, nos meus pensamentos. Peço-me a repetição das palavras. Mas eu nunca repito. Nem mesmo para eu própria (me) entender.

 

 

 

Dancei. O corpo era chumbo denso. E disseram-me. Baixa os ombros. Flete as pernas. Ergue os braços. O corpo era chumbo denso. Baixar os ombros era fácil. Tinham o peso do mundo. Fletir as pernas era fácil. Eu tinha o peso do desassossego. Erguer os braços... bem... para que céu?

 

A música continuava a tocar. E os movimentos eram coordenados com o ponteiro do relógio. Circulares. Calcanhar fugindo do chão, como se eu estivesse a aprender a voar. Simplicidade dos movimentos desusados. Compreender que nunca fui ser de pé assente no chão.

 

Azamboada das piruetas, descobri-me dona da rotação da Terra. O corpo era chumbo denso. O meu centro de gravidade era a mágoa. Escorrendo. Na pele. Quente. Cada toque uma espécie de deserto. No anoitecer. Quando tudo é gelo. E queima.

 

Algures, o chão. O encontro com o chão. O embate. A queda propositada. Corpo rígido. E a voz, na mente. Deixa fluir.

 

Deixa fluir. É isso que digo a mim mesma. Mas não me ouço. Falo baixinho, nos meus pensamentos. Peço-me a repetição das palavras. Mas eu nunca repito. Nem mesmo para eu própria (me) entender.

 

Mas irrompes pelo palco. Sais das notas da música que toca. E, de repente, já não é a minha voz. Nem a dele. Dizendo. Baixa os ombros. Flete as pernas. Ergue os braços. De repente, é a tua. E o corpo é uno. E escrevo o poema outra vez. Sobre a pele. Vazia. De mãos ausentes. O corpo tem vontade própria. O corpo foge-me. Vai. Ao teu encontro. Mergulha em ti.

 

Flui.

 

Sou um corpo de água, no qual eu mesma me afogo. E vou. E caio. E afundo. E cedo. E sou.

 

 

Deixa fluir. Deixo. O chumbo fica liquefeito. Escorro pelas frestas do soalho. Um corpo de água. Vou, esquecendo que fui. Vou, esquecendo que foste. Um corpo de água. Imersa nele, esqueço a linearidade do tempo e o centro de gravidade da Terra.

 

Deixo fluir.

 

 

Com todos os momentos diluídos no espaço do que eu sou, baixo os ombros, flito as pernas, ergo os braços.

 

 

Abraço a memória. E danço numa sala sem espelhos.



 Marina Ferraz





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