O atuador de embraiagem é só uma pequena peça dos automóveis. Para todos os efeitos, uma daquelas que a maioria das pessoas não conhece e com as quais ninguém se importa... até falhar. Fica para lá, a ser o que é. Componente fundamental para o funcionamento do carro... invisível.
A mudança largou o seu modo “A” e o Natal começou mais cedo. A piscar, no painel, o “N”, indicativo de ponto morto, juntava-se ao “ECO” e à luz de bateria, deixando-me saber que era hora de encostar. São 12 anos de carta e 7 de Mini-Carros. Já lhes conheço os truques. E, antes que a já astronómica conta da oficina passe para uma conta impossível de saldar sem recurso à prostituição ou ao tráfico de drogas pesadas, a berma da estrada faz-se escolha viável.
Dou por mim a pensar que nunca gostei muito de mudanças. Comprova-o, logo no primeiro instante, a escolha dos carros automáticos que sempre tive. Aqueles que imitam as variantes infantis. Nos quais só temos de premir um pedal para andar e outro para parar. Nos quais não precisamos de tirar as mãos do volante. Nos quais a manete das velocidades tem um papel mais estético do que prático.
Nunca gostei muito de mudanças. Mas elas são fundamentais.
O ritmo da vida, como o dos automóveis, não é estável. O tempo só é igual para os relógios e os calendários. Para as pessoas, o tempo varia. Sempre. Cada dia tem o seu ritmo. Os anos passam mais depressa ou mais devagar, consoante o estado de espírito, a quantidade de trabalho e as dinâmicas do corpo e da alma. Vamos com o tempo que o tempo tem. Acelerando e desacelerando conforme nos dita o dia e o corpo. Conforme nos dita a mente. E paramos até, no tempo. Andamos para trás. Devagarinho. Às vezes. Só para provar mais um pouco da doçura da memória que nos causa saudade.
Recusamos a necessidade, mas ela existe. De largar. De buscar outros equilíbrios além do café matinal e da chamada das seis. Além do som do aspirador matutino e da maçã trincada na Ordem.
Nunca gostei muito de mudanças. Mas elas são fundamentais.
São fundamentais mas não impedem o óbvio: avariamos de saudade muitas vezes! Tantas que, mesmo que as mudanças funcionem, insistimos em não as querer. Sentimos os solavancos, os pedidos do corpo pelo futuro... mas não as queremos... a alma está lá, agarradinha à memória, sendo sua promotora e sua escrava. Onde é feliz.
O atuador de embraiagem é só uma pequena peça dos automóveis. Sem ele, a mudança não funciona. Mas é só uma pequena peça, invisível. Tenho quase a certeza de que ninguém saberá o que ela é até que avarie...
Mas eu. Logo eu. Parada na beira da estrada. A 200 metros da portagem. Morrendo na praia. Escrutinando na cabeça todas as memórias das outras vezes que fiz o mesmo, perdendo tão perto do destino, confrontei-me com isto. Com a necessidade da mudança impossível e de todos os sinais de alerta quando ela não vem.
Nunca gostei de mudanças. E sei que o meu atuador mental da embraiagem do eu nunca funcionou muito bem. Fico frequentemente parada na beira da estrada da vida, sem saber o que fazer. Antes houvesse um número de assistência em viagem. Mas não há. Antes houvesse um reboque. Mas não há. E a única solução é agarrar nas pernas e aceitar. A mudança. Porque, sem ela, não há caminho.
Nunca gostei muito de mudanças. Continuo a não gostar muito de mudanças. Mas elas são fundamentais.
E, aqui entre nós... quando o atuador falha... descobrimos que não haver mudanças pode sair muito caro.
Belíssima prosa poética e filosófica. Obrigado.
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