terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Mian (e tantos outros)

 

Imagem de Viktor_Laszlo

Vinha do Paquistão. Não direto. Viria, talvez, agora, do Rato. Não demorou a chegar. Enganou-se na rua mas, mesmo assim, parou a 100 metros do lugar onde eu estava. Descia a pé, para vir ter comigo e eu já subia para fazer o mesmo. Cumprimentou-me com simpatia, chamando-me Mariana, como tantos outros fazem, que é bastante raro que leiam o meu nome bem à primeira, mesmo quando falam a língua.

 

Depressa nos entendemos em inglês e entramos no carro. Perguntou-me de onde era. Disse-me de onde vinha. Perguntou-me o que fazia. Escrevo. E, aproveitando o semáforo vermelho, olhou para mim e disse: if you write, then you should write about what the Portuguese government is doing to immigrants. E eu pensei. Só por um segundinho de afago ao meu próprio ego. Não podia ter-se sentado melhor pessoa aqui.

 

Discorreu sobre a angústia. A mulher, no Paquistão, que queria ir ver este mês porque faz anos. A mãe, que mora em Paris, e que gostaria de visitar pelo Ano Novo. O documento de renovação da residência que lhe dizem, há vários meses, estar a ser feito. It’s not only me! We pay for it, we pay our taxes, Mariana. But they keep telling us the same. Não está pronto. Não têm pessoal suficiente para dar resposta a tantos pedidos. É preciso aguardar. Entretanto, não podem sair do país. Desgostoso, diz-me que, para construir um edifício, é preciso ter os materiais de construção e que Portugal abriu as instituições de apoio sem esses “materiais”, sem os recursos humanos, sem os conhecimentos para lidar com outras pessoas, com outras culturas e com as suas necessidades.

 

Tem saudades da mãe. Tem saudades da mulher. Mas não usa a palavra saudade. Diz que quer vê-las com uns olhos-de-mágoa-portuguesa. Como se já se tivesse nacionalizado emocionalmente nos conceitos que não vocaliza. Diz-me outra coisa. Que conduz 14 horas por dia para ganhar dinheiro que lhe permita sustentar a família, lá longe. Diz-me que gosta do que faz. Que gosta do país, principalmente quando está sol. Que não gosta de chuva e acha as casas portuguesas húmidas, a ponto de fazerem aquelas manchas pretas que alastram nas paredes e tetos. Que gosta das pessoas. E novamente refere as suas pessoas, com olhos-fado.

 

I want to see my wife. Diz-me. Pergunto se tem filhos. Não tem. A mulher engravidou, mas perdeu o bebé aos 3 meses. Quer muito tentar outra vez. E essa resposta vem no mesmo tom saudoso, sem que fale de saudade, faz espiral nos problemas que lhe povoam a mente. Volta a dizer que quer o documento de residência renovado, para poder ir vê-las. À mulher. À mãe. Sente-se prisioneiro no país que escolheu para viver, but I still have faith.

 

Não lhe digo que não tenha, embora os serviços sejam uma desgraça mesmo para quem nasceu e viveu cá toda a vida.

 

Ele repete. Someone should write about this. Prometi-lhe que o faria. Esta sou eu a fazê-lo.

 

Porque me deixou à porta de casa. Me sorriu com olhos-portugueses-cheios-de-saudade-da-família. Me disse. I wish you the best. E eu respondi o mesmo. Eu desejo o melhor a toda a gente. Como é que tantas entidades oficiais não o fazem? Como é que não desejam o melhor e, além disso, ainda dão o pior e se estão totalmente a cagar para as pessoas?

 

I will write about it.

 

Já dizia Desmond Tutu, “Ficar neutro perante a injustiça, é escolher o lado do opressor”.

 

Não serei mais uma gota de humidade a fazer alastrar o negro nas paredes de Mian.


 Marina Ferraz




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