Fotografia de Mauro Hilário
Libertei-me do medo e descobri
que, sem ele, existe muito vazio em mim.
Se ainda tivesse medo, quando dele
me libertei, talvez tivesse temido esse vazio. Mas, sem as suas grilhetas,
descobri que um espaço vazio não é mais do que um espaço de oportunidade, que
podemos preencher como bem entendermos.
Podia ter preenchido o meu vazio
de conceitos, mas preenchi-o de verdades. Porque, ausente em mim, o medo já não
me impelia a querer as mentiras suaves, bendizentes e amenas ou a subjugar-me
aos juízos e noções consensuais da sociedade. Claro que, para o fazer, precisei
de me encher de luz e, por vezes, a luz segregou sombras sobre os vazios do meu
peito.
Sombras. Ainda bem. Gostei delas.
Porque foi na sombra que pude colocar, no centro desse vazio, uma dose de amor
inesperada. Descobri que estava preparada para sentir e para me dar sem regras.
Eu. Mas a sociedade não. Então, aproveitei as sombras. Aproveitei-as e descobri que alguns sentimentos são melhores assim: vividos na penumbra. Apercebi-me, neste
processo, de que as pessoas partilham demasiado da sua intimidade com o mundo e
que é isso que a estraga, que a destrói, que nos deixa inevitavelmente sós no
meio de tanta gente.
Bebi das palavras dos outros e
percebi o amargo que elas têm. Descobri que o meu vazio preenchido de segredos,
na ausência do medo, era apenas mel. Prefiro as palavras que não digo a ninguém
e a forma como elas são sementes para tantas florestas em mim. Gosto de passear
por essas florestas interiores, onde a seiva das árvores é mar e o som das aves
é verso. A ausência do medo foi o que me permitiu desbravá-las, sem terror de
me perder em mim. Descobri que, entre as minhas células, existem flores
silvestres e dons. Descobri que, no meio dos meus órgãos vitais, algumas
ambições são morte e loucura. E descobri que a aptidão para a generosidade não
se prende - como tantas vezes me quiseram fazer crer, alimentando-se dos medos
que eu tinha para me subverter - com a brandura dos gestos visíveis mas com o
furtivo talento de dar em segredo.
A falta do medo em mim fez-me
recordar da gaveta da cama, para onde tinha atirado pensamentos de insónia,
para que não me incomodassem. Sem os antigos pudores, dei por mim a abrir a
gaveta e descobri que apenas sobrava pó. Libertei o fantasma antigo de amores
que não souberam amar-me como eu amei. E vasculhei, por entre papéis, apenas
para descobrir que a única dívida que me faltou saldar foi para comigo mesma.
Comecei a edificar as primeiras bases sangrentas do perdão, onde pretendo, mais
tarde, alicerçar muito futuro.
Libertei-me do medo e descobri
que, sem ele, existe muito vazio em mim.
Se ainda tivesse medo, quando dele
me libertei, talvez tivesse temido esse vazio. Com medo, o vazio é intolerável:
traz saudade na forma de fantasmas e solidão com garras que rasgam a pele. Mas,
sem medo, o vazio é apenas um espaço aberto à espera do que vem depois.
Iluminei-o e vi-lhe as sombras projetadas. Desenhei, com as minhas mãos, as
silhuetas que quis. Aceitei que também eu era luz, sombra e vazio.
Neste jogo de luz e sombra,
percebi que libertar o medo não bastava. Chamei-o ao vazio de mim. Abracei-o
até lhe estilhaçar os ossos. Beijei-o até o sufocar. Matei-o. Assassina de
temores e receios, apaixonei-me então pelos meus vazios e, por fim, senti-me
gente.
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