Tocou um sino ao longe. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter
ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo.
Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele
sono profundo e acolhedor...
Ela não tinha caído no sono. Esse sono é somente para quem,
um dia, esteve acordado. E ela não tinha estado. Tinha estado dormente. Estava
dormente para a vida havia tanto tempo que nem estava certa de ter vivido.
Então, era-lhe negada a dádiva de fechar os olhos e cair no abismo profundo de
um sono descansado. Mas adormeceu. Adormeceu aos poucos.
O seu sono começou nas mãos, que escreviam um bilhete. Nas
mãos que escovaram o cabelo, até o deixarem perfeito. Nas mãos que abriram o
frasco. Nas mãos que pegaram na água. Nas mãos que abriram a cama. Nas mãos que
agarraram a almofada.
Adormeceram-lhe os olhos, fechando, levemente.
Adormeceram-lhe os braços e as pernas, no conforto inegável das mantas.
Adormeceu-lhe a alma cansada, magoada, ferida. Adormeceram um a um. Suavemente.
Levemente. Aos poucos. E foram adormecendo aos poucos os sentidos débeis, até
que, num último batimento, lhe adormeceu o coração.
Foi então que sorriu. Não sorria há muito tempo. Desde que a
vida a deixara na dormência de não poder adormecer como todos os outros. Desde
que as lágrimas tinham povoado os olhos que agora dormiam. O seu sorriso foi
puro. Simples. Já não se lembrava de algo ser puro ou simples. Mas, no último
batimento do seu coração, ela sentiu: sentiu a paz. Foi por isso que sorriu.
Não acreditava na eternidade da alma. Acreditava, sim, no
fim da dor. Acreditava que a vida e a morte eram irmãs. Uma feita em dor, a
outra em medo. Preferia o medo, ainda assim. E foi por isso que se fez
adormecer aos poucos: primeiro as mãos, os olhos, o corpo, a alma. Por fim, o
coração...
A dor adormecera também, ainda que o medo a tivesse
acompanhado até ao fim. Enquanto a respiração adormecia, com o último bater do
coração, o quarto ficou no silêncio do seu sono profundo, enquanto o bilhete
escrito à pressa gritava incrédulo, pedindo clemência e compreensão. Uma
clemência e compreensão que ela tinha sabido impossíveis enquanto adormecia
para a dor.
E o silêncio firmou-se até que, ao longe, um sino bradou.
Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão
de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E
era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor, do qual jamais
acordaria.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Muito lindo este texto, Marina Ferraz...Embora carregado dessa melancolia e imensa recusa.
ResponderEliminarMuito bem construído e impactante.
Digno de nota. Parabéns.
Continue com este grande trabalho em prol da literatura.
Daniel
Yes. I do believe!
ResponderEliminarLINDO ESTA POESIA E UMA SINFONIA POÉTICA, DE UM TRANSLADAR UNIVERSAL...
ResponderEliminarSem dúvida um dos meus favoritos mana! :) Adorei!***
ResponderEliminarUm dos textos mais lindos que já li,tem muita emoção e pureza nas palavras Ma,e o jeito como descreve a moça,faz com que o texto seja mais triste e mais bonito.
ResponderEliminarParabéns minha querida,beijinhos Jenny ♥
Marina Ferraz, se algum vez considerar a possibilidade de transformarmos em áudio algum dos seus contos maravilhosos, pode me contatar.
ResponderEliminarAcredito que faremos uma bela parceria.
Daniel Amaral
www.amoepoesia.org
É muito bonito, seu texto é impactante e ao mesmo tempo sereno. Gosto muito do jeito como escreves, parabéns pelo belíssimo trabalho.
ResponderEliminarMuito lindo o texto...
ResponderEliminarA morte de quem ñ deu conta de viver, pelo que, ñ percebeu quando a morte chegou.
Muito lindo o texto...
ResponderEliminarA morte de quem ñ deu conta de viver, e que por isso ñ percebeu quando a morte chegou.