segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Adormeceu



Tocou um sino ao longe. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor...
Ela não tinha caído no sono. Esse sono é somente para quem, um dia, esteve acordado. E ela não tinha estado. Tinha estado dormente. Estava dormente para a vida havia tanto tempo que nem estava certa de ter vivido. Então, era-lhe negada a dádiva de fechar os olhos e cair no abismo profundo de um sono descansado. Mas adormeceu. Adormeceu aos poucos.
O seu sono começou nas mãos, que escreviam um bilhete. Nas mãos que escovaram o cabelo, até o deixarem perfeito. Nas mãos que abriram o frasco. Nas mãos que pegaram na água. Nas mãos que abriram a cama. Nas mãos que agarraram a almofada.
Adormeceram-lhe os olhos, fechando, levemente. Adormeceram-lhe os braços e as pernas, no conforto inegável das mantas. Adormeceu-lhe a alma cansada, magoada, ferida. Adormeceram um a um. Suavemente. Levemente. Aos poucos. E foram adormecendo aos poucos os sentidos débeis, até que, num último batimento, lhe adormeceu o coração.
Foi então que sorriu. Não sorria há muito tempo. Desde que a vida a deixara na dormência de não poder adormecer como todos os outros. Desde que as lágrimas tinham povoado os olhos que agora dormiam. O seu sorriso foi puro. Simples. Já não se lembrava de algo ser puro ou simples. Mas, no último batimento do seu coração, ela sentiu: sentiu a paz. Foi por isso que sorriu.
Não acreditava na eternidade da alma. Acreditava, sim, no fim da dor. Acreditava que a vida e a morte eram irmãs. Uma feita em dor, a outra em medo. Preferia o medo, ainda assim. E foi por isso que se fez adormecer aos poucos: primeiro as mãos, os olhos, o corpo, a alma. Por fim, o coração...
A dor adormecera também, ainda que o medo a tivesse acompanhado até ao fim. Enquanto a respiração adormecia, com o último bater do coração, o quarto ficou no silêncio do seu sono profundo, enquanto o bilhete escrito à pressa gritava incrédulo, pedindo clemência e compreensão. Uma clemência e compreensão que ela tinha sabido impossíveis enquanto adormecia para a dor.
E o silêncio firmou-se até que, ao longe, um sino bradou. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor, do qual jamais acordaria.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet




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9 comentários:

  1. Anónimo14:52

    Muito lindo este texto, Marina Ferraz...Embora carregado dessa melancolia e imensa recusa.
    Muito bem construído e impactante.
    Digno de nota. Parabéns.
    Continue com este grande trabalho em prol da literatura.

    Daniel

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  2. LINDO ESTA POESIA E UMA SINFONIA POÉTICA, DE UM TRANSLADAR UNIVERSAL...

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  3. Sem dúvida um dos meus favoritos mana! :) Adorei!***

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  4. Jennyfer Aguillar19:57

    Um dos textos mais lindos que já li,tem muita emoção e pureza nas palavras Ma,e o jeito como descreve a moça,faz com que o texto seja mais triste e mais bonito.
    Parabéns minha querida,beijinhos Jenny ♥

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  5. Marina Ferraz, se algum vez considerar a possibilidade de transformarmos em áudio algum dos seus contos maravilhosos, pode me contatar.

    Acredito que faremos uma bela parceria.

    Daniel Amaral
    www.amoepoesia.org

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  6. Jessica A.22:22

    É muito bonito, seu texto é impactante e ao mesmo tempo sereno. Gosto muito do jeito como escreves, parabéns pelo belíssimo trabalho.

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  7. Muito lindo o texto...
    A morte de quem ñ deu conta de viver, pelo que, ñ percebeu quando a morte chegou.

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  8. Muito lindo o texto...
    A morte de quem ñ deu conta de viver, e que por isso ñ percebeu quando a morte chegou.

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